Por Luiz
Carlos Azenha
"Numa recente palestra na França, aquela
em que, ao cobrir, a "Folha" tirou do contexto palavras do ex-presidente,
Lula fez uma declaração de deixar a esquerda brasileira arrepiada, sobre o que
ele vê como objetivos do trabalhador (a) brasileiro (a), quiçá mundial: um
homem/mulher bonito (a) para casar, uma casinha, um carrinho e um
computador/ipad/ipod.
Dado o tom descontraído em que foi feita a
declaração, não devemos levá-la ao pé da letra. Porém, fica clara a dimensão
material da “ideologia” do lulismo. Lula não se referiu no discurso à necessidade
de conquistar o poder para atender àqueles objetivos que havia elencado, talvez
um cacoete dos que não querem deixar o jogo muito explícito diante do
adversário de classe. Mas ficou subentendido, já que quem discursava era um
ex-presidente de dois mandatos.
Lula fez o nome no estádio da Vila Euclides, em
São Bernardo do Campo.
Por obrigação de ofício, conheci a cidade operária
nos anos 80. Não propriamente nas grandes greves do ABC, nem na história
subsequente do Partido dos Trabalhadores. Eu era um repórter de TV iniciante,
na "TV Globo" de Bauru, e vinha a São Paulo cobrir férias de outros repórteres.
Depois que os metalúrgicos inventaram “o povo não
é bobo, abaixo a Rede Globo”, a emissora deixou de enviar repórteres mais
graduados para cobrir os eventos no ABC. Sofreram os de escalão médio, que nos
contavam histórias passadas. Eu era peão. Fui lá em outras circunstâncias,
gravar o "Globo Cidade", boletim sobre problemas comunitários.
Estive lá outras vezes, mas nesse sábado passei
algumas horas em São Bernardo por conta do jogo entre o time local e o Santos,
na abertura do Campeonato Paulista.
Lula estava em seu camarote com dona Marisa e
cartolas, o que diz muito sobre como o Brasil mudou nos últimos 30 anos.
Havemos de concordar que boa parte das mudanças se deveu ao Partido dos
Trabalhadores, com seus erros e acertos, virtudes e defeitos.
A mídia corporativa, fiel aos ditames neoliberais
do PSDB, mesmo sem querer contribuiu muito com o PT: o partido que ocupa o
Planalto há dez anos, que administra Estados e centenas de prefeituras, nunca
sentiu-se confortavelmente no poder, por conta das críticas diárias e muitas
vezes injustas.
E isso, de certa forma, faz bem, já que suscita os
debates internos que podem levar o partido a avançar. Ou não.
O fato é que o estádio da Vila Euclides, hoje
Estádio Primeiro de Maio, está um brinco. São Bernardo passou por transformação completa. A cidade operária é hoje uma cidade de classe média.
Cerca de 15 mil pessoas no estádio e eu, com um
amigo, no meio da torcida do Bernô.
Gente de todo tipo, como a gente sempre encontra
nas arquibancadas de um estádio.
Muitos superlativos: “O presidente tá aí hoje” (em
São Bernardo, Lula não é ex); “tá na SporTv, tem gente do mundo inteiro
olhando”; “o Samuel vai acabar com o Neymar”.
Todas as jogadas em que o craque do Santos se
aproximava da lateral, as pessoas corriam com os celulares para fotografar (a
caminho do Ipad, diria Lula).
Na arquibancada, dezenas de meninos com o corte de
cabelo e os brincos do Neymar, não por serem santistas, mas porque Neymar é um
produto de seu tempo (e, lembrem-se, ascendeu na vida).
As crianças ao meu lado eram de uma família muito,
muito simples.
Estavam todas claramente encantadas com o
espetáculo, desde os fogos de artifício da abertura até as malandragens do
Neymar. Os pais complementaram a festa com salgadinhos e refrigerantes. Nem a
chuva os espantou: a família comprou capas para todos, a 5 reais a unidade.
Apesar da derrota, sairam todos alegríssimos do
estádio pelo simples fato de terem participado.
Quem conhece o Brasil, sabe que isso nem sempre
foi possível.
Nas minhas viagens pelo país, sempre me encanta
ver a alegria espontânea de quem antes não podia e hoje pode. Comprar carne,
andar de avião, comprar celular com três chips (para escapar das tarifas
altíssimas entre operadoras), comprar a Honda Biz ou Pop.
Fico fascinado especialmente pela liberdade
geográfica: quem antes não podia sair de sua região, hoje pode. De moto ou de
avião. O cara que economizava na passagem de ônibus hoje vai ao Ibirapuera com
a família, aos domingos. Quando o bilhete único do Haddad estrear, preparem-se:
o que o cara antes gastava no transporte vai bombar o comércio e o lazer.
O Merval, provavelmente, se arrepia com tudo isso,
mas o fato é que desconhecer esses acontecimentos, em si, turva as
análises políticas que ele produz. Estamos falando de algo que escapa ao Ibope
ou ao Datafolha.
Por mais que a gente despreze esta ascensão
material, ela se traduz, também, numa sensação de pertencimento que nenhuma
pesquisa de opinião é capaz de medir.
'Pertencimento' equivale, sem ser, a uma libertação de classe.
Faz alguns anos fui ao Quênia fazer uma reportagem
sobre a família de Barack Obama.
Ficamos em um hotel de Kisumu, na margem do lago
Vitória.
Num momento de folga, fui ao bar do hotel, o mais
chique da cidade. Fiquei de papo com o barman. A certa altura, ele me contou que, até hoje, recebia visita de gente vinda dos confins do interior queniano. Aquele
hotel tinha sido famoso durante o colonialismo britânico e era segregado, ou
seja, exclusivo dos brancos. Tinha a primeira piscina de Kisumu, onde negros
não se banhavam.
Alguns visitantes, segundo ele, não consumiam
absolutamente nada: vinham para ter certeza de que, agora, podiam entrar.
Vinham, olhavam e iam embora, provavelmente concluindo que, sim, os tempos
tinham mudado.
Era a certeza de que agora 'pertenciam'. Tinha a sensação,
ainda que falsa, de que estavam plenamente integrados à sociedade.
Dividiam os ídolos (o zagueiro Samuel), os líderes
(o Lula vem ao estádio comigo), os bens físicos (eu também posso ser explorado
por preços caríssimos de refrigerantes) e imateriais (vou botar a foto do
Neymar no 'Face' e tirar uma onda desse moleque folgado que eu só via na Globo).
O grande problema da oposição brasileira é que,
gostem ou não do PT, o partido está associado a esta sensação compartilhada hoje por milhões
de brasileiros.
Colocado de forma simples, o PT pode até ser
aquele homem (mulher) feio (a), mas foi o único (a) que, no baile, me tirou
para dançar.”
FONTE: escrito pelo jornalista Luiz Carlos Azenha em seu portal "Viomundo" (http://www.viomundo.com.br/voce-escreve/o-pt-e-uma-sensacao-que-as-pesquisas-nao-medem.html).
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