Ilha de Chipre (no centro do círculo)
“A bancarrota neoliberal chegou
agora ao Chipre, uma das maiores ilhas do Mediterrâneo, que segue o destino de
outros antigos paraísos do capital, como Irlanda e Islândia. Com a crise, veio
o confisco, que atinge investidores europeus – sobretudo russos e britânicos – que escolheram a ilha como
residência pelas facilidades fiscais, entre elas o fato de o imposto sobre a
renda ser linear e muito baixo: 10%.
Por Flávio Aguiar, de Berlim
Enquanto o novo Papa, Francisco I,
assumia seu novo posto, distribuindo bênçãos e rezando missa, uma nova tsunami
de adrenalina invadia as veias abertas do continente europeu. O motivo desta
nova e, como as antigas, violenta turbulência a se propagar a partir da Zona do
Euro foi a resolução tomada pelos ministros da área financeira, reunidos em
Bruxelas durante o fim de semana, sobre a ajuda à combalida banca cipriota. Tão
forte foi a agitação que os mesmos ministros realizaram uma vídeo-conferência
na segunda-feira (18), para revisar as medidas, enquanto bolsas e ações de banco
despencavam, manifestantes tomavam as ruas de Nicósia, a capital da República
do Chipre, e correntistas, poupadores e até investidores ameaçavam uma corrida
aos bancos na Espanha e na Itália.
Chipre é uma das maiores ilhas do Mediterrâneo, dividida em duas partes: em um terço da ilha, ao norte, existe uma hipotética República Turca de Chipre, na prática ocupada por tropas turcas e só reconhecida pelo governo de Ancara e de alguns países islâmicos. Os restantes dois terços constituem a República do Chipre, com uma população total estimada em 1.100.000 habitantes, embora o último censo tenha apontado pouco mais de 800 mil cidadãos. A diferença se deve ao fato de que o número de estrangeiros que moram na república é muito alto. Uma parte desses são aposentados ou investidores europeus – sobretudo russos e britânicos – que escolheram a ilha como residência pelas facilidades fiscais, entre elas o fato de o imposto sobre a renda ser linear e muito baixo: 10%.
Apesar desse atrativo, a República do Chipre não escapou ao destino de hoje ex-paraísos neoliberais, como a Irlanda ou a Islândia (esta hoje recuperada, graças a seu programa não ortodoxo de regeneração financeira, uma exceção no caos europeu), e em maio do ano passado começou a dar sinais de exaustão e degeneração financeiras, tendo pedido ajuda ao “Fundo de Emergência da Zona do Euro”, de que faz parte.
O montante da ajuda pedida era de 17 bilhões de euros. Quase uma ninharia diante dos bilhões já despejados na Grécia, na Irlanda, na Espanha, e em Portugal. Afinal, a economia cipriota representa apenas 0,2% da economia da Zona do Euro. Começando no sábado e adentrando até a madrugada de domingo para segunda, a reunião dos ministros decidiu atacar o problema. Tão complicadas foram as negociações que o próprio presidente do país, o conservador Nicos Anastasíades, passou a participar do encontro, ao lado do seu ministro das Finanças, Michalis Sarris.
O que complicava as negociações era a exigência – hoje com a paternidade posta em dúvida – de que os correntistas e poupadores cipriotas participassem da operação, através do confisco de parte de suas economias, por meio de um imposto único. A resolução afinal tomada deveria, segundo o presidente do Grupo do Euro e ministro das Finanças da Holanda, Jeroen Dijsselbloem, “garantir a estabilidade do Chipre e na Zona do Euro como um todo”.
O tiro saiu-lhe perfeitamente pela culatra e entrou pela garganta abaixo de milhões e milhões de europeus. Tudo porque a resolução atravessava um Rubicão nunca dantes navegado, este de impor o confisco de parte das economias dos depositantes nas instituições bancárias cipriotas: 6,75% até 100 mil euros, 9,9% a partir daí. Com isso, o país visava arrecadar (e ainda visa) 5,8 bilhões de euros, vindo outros 10 do Fundo de Emergência. O governo e as autoridades da Zona do Euro contavam com um feriado na segunda-feira, devido ao começo das festividades da Páscoa Ortodoxa. Como medida suplementar, proibiram transações bancárias via internet, para evitar a fuga de capitais.
Tradicionalmente, esse feriado ortodoxo leva as famílias – com o começo da primavera – a fazer piqueniques nos parques de Nicósia e no resto da ilha. Desta vez, não houve piqueniques. Ao contrário, multidões começaram a ocupar as ruas da capital, protestando contra a medida. Nem foi eficaz a justificativa aventada para essa “participação” no “salvamento” da “economia” (leia-se: salvação da banca cipriota e seus credores internacionais) do país, a de que os bancos locais tornaram-se guarida procurada por oligarcas russos e investidores britânicos.
A insatisfação transbordou. A primeira medida direta veio do Reino Unido, que suspendeu o pagamento de aposentados com contas em Chipre, com o objetivo de “proteger” seus investimentos, afirmando que ele seria retomado assim que a situação se esclarecesse. Na sequência, bolsas despencaram, começou uma turbulência ameaçadora em bancos italianos e espanhóis, com correntistas visando proteger seus fundos, alguns afirmando que passariam a preferir os próprios colchões às contas bancárias. As ações de bancos começaram a despencar, inclusive na poderosa Alemanha – logo apontada como a mãe da idéia.
O ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, deu declarações que a Alemanha fora contra penalizar os pequenos investidores, embora seu governo tenha insistido na obtenção de parte do socorro através dos bancos cipriotas. Dedos apontaram, então, o presidente de Chipre, que se recusara a aceitar uma carga maior sobre os grandes investidores, de 12,5% ou 15% a partir dos 500 mil euros depositados. O Parlamento em Nicósia, onde o governo tem pequena margem de votos sobre a oposição, também se agitou, e até o momento em que redijo esta nota, não foi possível aprovar a medida. O feriado bancário foi estendido até quinta-feira. A teleconferência dos ministros das áreas financeiras propôs uma revisão da medida, salvaguardando os pequenos poupadores. Isso poderia vir sob a forma de reduzir-lhes o confisco a 3%, isentando os depósitos até 20 mil euros. Em contrapartida, voltou-se a falar na alíquota maior para grandes investidores, além dos 9,9%.
Outros dedos apontaram para a Comissão Européia, o FMI, o Banco Central Europeu. Várias unhas, nesta altura, voltaram-se para os credores das dívidas cipriotas públicas e privadas. É verdade que houve quem saudasse a medida como um “pragmatismo” indispensável, para evitar que apenas os “contribuintes europeus” paguem as contas dos países endividados e de seus sistemas financeiros. (V. p. ex., Christian Rickens, “Saving Cyprus: Tapping Bank Customers is the Right Move”, no ‘Spiegel International’). Também logo se aventou, com contido júbilo, que a medida deveria ser logo estendida aos correntistas de outros países, como a Itália e a Espanha. É um argumento curioso, pois parece partir da premissa de que “correntistas” não são “continuintes”. Na verdade, o argumento se apóia, nos bastidores, naquela surrada tese de que é necessário “disciplinar” o Sul da Europa, impondo-lhe a “moral saudável” do Norte.
Porém, outras linhas se interpuseram nesse cruzar de dedos, apontando responsáveis pela medida, ou apontando novos alvos para ela.
Pais ou não da idéia, os credores dos “bonds” cipriotas foram apontados como favorecidos pelo confisco, pois nada teriam a pagar. Mas mesmo entre eles, começaram a surgir dissidências. Analistas apontaram que os pequenos credores poderiam ser prejudicados, pois em caso de atribulações no honrar destas dívidas – e isso não está descartado, pois a medida que envolve 10 bilhões de euros do Fundo precisa da aprovação de todos os parlamentos envolvidos – os grandes investidores são favorecidos pois, em geral, pagam taxas suplementares para serem pagos em primeiro lugar.
A confusão vai se estender por esta semana toda, sem dúvida.
Esta foi a Europa que encontrei ao retornar de três semanas no Brasil. Apesar dos problemas do nosso país, não deu para conter uma sensação de que retornava de uma “ilha de tranqüilidade” para um continente que não só está com suas veias abertas, mas está também com seu sistema nervoso em frangalhos.”
Chipre é uma das maiores ilhas do Mediterrâneo, dividida em duas partes: em um terço da ilha, ao norte, existe uma hipotética República Turca de Chipre, na prática ocupada por tropas turcas e só reconhecida pelo governo de Ancara e de alguns países islâmicos. Os restantes dois terços constituem a República do Chipre, com uma população total estimada em 1.100.000 habitantes, embora o último censo tenha apontado pouco mais de 800 mil cidadãos. A diferença se deve ao fato de que o número de estrangeiros que moram na república é muito alto. Uma parte desses são aposentados ou investidores europeus – sobretudo russos e britânicos – que escolheram a ilha como residência pelas facilidades fiscais, entre elas o fato de o imposto sobre a renda ser linear e muito baixo: 10%.
Apesar desse atrativo, a República do Chipre não escapou ao destino de hoje ex-paraísos neoliberais, como a Irlanda ou a Islândia (esta hoje recuperada, graças a seu programa não ortodoxo de regeneração financeira, uma exceção no caos europeu), e em maio do ano passado começou a dar sinais de exaustão e degeneração financeiras, tendo pedido ajuda ao “Fundo de Emergência da Zona do Euro”, de que faz parte.
O montante da ajuda pedida era de 17 bilhões de euros. Quase uma ninharia diante dos bilhões já despejados na Grécia, na Irlanda, na Espanha, e em Portugal. Afinal, a economia cipriota representa apenas 0,2% da economia da Zona do Euro. Começando no sábado e adentrando até a madrugada de domingo para segunda, a reunião dos ministros decidiu atacar o problema. Tão complicadas foram as negociações que o próprio presidente do país, o conservador Nicos Anastasíades, passou a participar do encontro, ao lado do seu ministro das Finanças, Michalis Sarris.
O que complicava as negociações era a exigência – hoje com a paternidade posta em dúvida – de que os correntistas e poupadores cipriotas participassem da operação, através do confisco de parte de suas economias, por meio de um imposto único. A resolução afinal tomada deveria, segundo o presidente do Grupo do Euro e ministro das Finanças da Holanda, Jeroen Dijsselbloem, “garantir a estabilidade do Chipre e na Zona do Euro como um todo”.
O tiro saiu-lhe perfeitamente pela culatra e entrou pela garganta abaixo de milhões e milhões de europeus. Tudo porque a resolução atravessava um Rubicão nunca dantes navegado, este de impor o confisco de parte das economias dos depositantes nas instituições bancárias cipriotas: 6,75% até 100 mil euros, 9,9% a partir daí. Com isso, o país visava arrecadar (e ainda visa) 5,8 bilhões de euros, vindo outros 10 do Fundo de Emergência. O governo e as autoridades da Zona do Euro contavam com um feriado na segunda-feira, devido ao começo das festividades da Páscoa Ortodoxa. Como medida suplementar, proibiram transações bancárias via internet, para evitar a fuga de capitais.
Tradicionalmente, esse feriado ortodoxo leva as famílias – com o começo da primavera – a fazer piqueniques nos parques de Nicósia e no resto da ilha. Desta vez, não houve piqueniques. Ao contrário, multidões começaram a ocupar as ruas da capital, protestando contra a medida. Nem foi eficaz a justificativa aventada para essa “participação” no “salvamento” da “economia” (leia-se: salvação da banca cipriota e seus credores internacionais) do país, a de que os bancos locais tornaram-se guarida procurada por oligarcas russos e investidores britânicos.
A insatisfação transbordou. A primeira medida direta veio do Reino Unido, que suspendeu o pagamento de aposentados com contas em Chipre, com o objetivo de “proteger” seus investimentos, afirmando que ele seria retomado assim que a situação se esclarecesse. Na sequência, bolsas despencaram, começou uma turbulência ameaçadora em bancos italianos e espanhóis, com correntistas visando proteger seus fundos, alguns afirmando que passariam a preferir os próprios colchões às contas bancárias. As ações de bancos começaram a despencar, inclusive na poderosa Alemanha – logo apontada como a mãe da idéia.
O ministro alemão das Finanças, Wolfgang Schäuble, deu declarações que a Alemanha fora contra penalizar os pequenos investidores, embora seu governo tenha insistido na obtenção de parte do socorro através dos bancos cipriotas. Dedos apontaram, então, o presidente de Chipre, que se recusara a aceitar uma carga maior sobre os grandes investidores, de 12,5% ou 15% a partir dos 500 mil euros depositados. O Parlamento em Nicósia, onde o governo tem pequena margem de votos sobre a oposição, também se agitou, e até o momento em que redijo esta nota, não foi possível aprovar a medida. O feriado bancário foi estendido até quinta-feira. A teleconferência dos ministros das áreas financeiras propôs uma revisão da medida, salvaguardando os pequenos poupadores. Isso poderia vir sob a forma de reduzir-lhes o confisco a 3%, isentando os depósitos até 20 mil euros. Em contrapartida, voltou-se a falar na alíquota maior para grandes investidores, além dos 9,9%.
Outros dedos apontaram para a Comissão Européia, o FMI, o Banco Central Europeu. Várias unhas, nesta altura, voltaram-se para os credores das dívidas cipriotas públicas e privadas. É verdade que houve quem saudasse a medida como um “pragmatismo” indispensável, para evitar que apenas os “contribuintes europeus” paguem as contas dos países endividados e de seus sistemas financeiros. (V. p. ex., Christian Rickens, “Saving Cyprus: Tapping Bank Customers is the Right Move”, no ‘Spiegel International’). Também logo se aventou, com contido júbilo, que a medida deveria ser logo estendida aos correntistas de outros países, como a Itália e a Espanha. É um argumento curioso, pois parece partir da premissa de que “correntistas” não são “continuintes”. Na verdade, o argumento se apóia, nos bastidores, naquela surrada tese de que é necessário “disciplinar” o Sul da Europa, impondo-lhe a “moral saudável” do Norte.
Porém, outras linhas se interpuseram nesse cruzar de dedos, apontando responsáveis pela medida, ou apontando novos alvos para ela.
Pais ou não da idéia, os credores dos “bonds” cipriotas foram apontados como favorecidos pelo confisco, pois nada teriam a pagar. Mas mesmo entre eles, começaram a surgir dissidências. Analistas apontaram que os pequenos credores poderiam ser prejudicados, pois em caso de atribulações no honrar destas dívidas – e isso não está descartado, pois a medida que envolve 10 bilhões de euros do Fundo precisa da aprovação de todos os parlamentos envolvidos – os grandes investidores são favorecidos pois, em geral, pagam taxas suplementares para serem pagos em primeiro lugar.
A confusão vai se estender por esta semana toda, sem dúvida.
Esta foi a Europa que encontrei ao retornar de três semanas no Brasil. Apesar dos problemas do nosso país, não deu para conter uma sensação de que retornava de uma “ilha de tranqüilidade” para um continente que não só está com suas veias abertas, mas está também com seu sistema nervoso em frangalhos.”
FONTE: escrito por
Flávio Aguiar, em Berlim, e publicado no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21763).
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‘democracia&política’].
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COMPLEMENTAÇÃO [com o ponto-de-vista dos grandes conglomerados financeiros]:
Da agência norte-americana de notícias Reuters
Por Michele Kambas e Karolina Tagaris
NICÓSIA, 19 Mar (Reuters) - O Parlamento do Chipre
rejeitou de forma esmagadora na terça-feira um imposto sobre depósitos
bancários como condição para o resgate europeu, colocando em xeque os esforços
da zona do euro para ajudar a mais recente vítima da crise da dívida no bloco
monetário.
A votação no Parlamento do pequeno país representou
forte golpe para a zona do euro, composta por 17 nações, após legisladores na
Grécia, Portugal, Irlanda, Espanha e Itália terem repetidamente aceitado
medidas impopulares de austeridade ao longo dos últimos três anos para
assegurar ajuda da Europa.
A rejeição, com 36 votos contrários, 19 abstenções
e um parlamentar ausente na votação, deixou a ilha do leste do Mediterrâneo, um
dos menores Estados do continente, à beira do colapso financeiro."
FONTE DA COMPLEMENTAÇÃO: por Michele Kambas e Karolina Tagaris, da agência norte-americana de notícias Reuters. Transcrito no portal de Luis
Nassif ( http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/parlamento-do-chipre-rejeita-imposto-sobre-depositos).
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