Por Roberto Amaral, na revista
“CartaCapital”
“O professor Wanderley de Souza, um
dos mais notáveis cientistas brasileiros em atividade, contou-me, faz anos,
episódio ocorrido no início dos anos 70, na FINEP, a mais importante
financiadora brasileira de pesquisa e inovação tecnológica. Estávamos, naquele
então, no auge do ‘milagre brasileiro’, quando a agência foi visitada por uma
delegação de políticos, empresários e funcionários da Coreia do Sul,
interessados em conhecer o ‘esplendoroso
desenvolvimento industrial brasileiro’, para, eventualmente, aplicá-lo em
seu país. Recebeu-os o presidente José Pelúcio, exemplar homem público, a quem
muito devemos, inclusive a criação do FUNTEC e do FNDCT. Ao cabo de sua
exposição, centrada no sucesso da indústria automobilística brasileira, o
coordenador da delegação visitante observou algo assim: "Parece que o senhor não nos entendeu; não estamos
interessados em atrair montadoras estrangeiras, mas em criar nossa própria
indústria automobilística".
Naqueles anos 70, o Brasil produzia mais
automóveis do que toda a Ásia, menos o Japão. Hoje, todos os asiáticos têm suas
próprias marcas, e as exportam para o Brasil, a começar pela Coreia. Mas não é
só. Os coreanos estão instalando no Brasil suas próprias montadoras! A Hyundai
é uma delas. O mesmo está ocorrendo com a China, que antes importava o Santana,
calhambeque da VW montado aqui. Nos anos 80, a produtividade média da economia
brasileira era igual à coreana. Hoje, a da asiática é três vezes maior do que a
nossa. Entre os oito líderes do setor automotriz se encontram Brasil e México,
ambos em franca expansão. Mas são esses países, dentre aqueles oito, os únicos
que não têm marca própria. As maquiladoras
mexicanas (as peças
fabricadas nos EUA atravessam a fronteira para serem montadas pela mão de obra
aviltada) importam 75% dos insumos que processam (Esses dados estão em Gabriel Palma,
(HTTP://.cartamaior.com.br/templetes/materiaMostrar.cfm?materia_id=19522) a quem igualmente devo a pergunta que utilizei como título deste artigo).
Assim, o México será, sempre, uma dependência colonial dos EUA.
Dir-se-á que nosso fracasso na
indústria de transformação é compensável pelo sucesso do agronegócio (a agricultura cresce mais do que a maior
parte dos setores da economia brasileira há mais de uma década) catapultado
pelas pesquisas da EMBRAPA. Em termos. A produção e comercialização de
sementes, herbicidas, fungicidas e mais isso e mais aquilo está nas mãos de
multinacionais como a Monsanto, a Bayer e a Syngenta. Fenômeno similar se
repete com o pró-álcool: a produção
brasileira de etanol está crescentemente passando ao controle de multinacionais.
O que aqui chamamos de ‘tragédia de uma industrialização dependente’,
tem suas raízes no modelo desenvolvimentista fundado no tripé empresa nacional-multinacionais-Estado,
no qual se dá preferência às multinacionais, sem discutir nem a quantidade, nem
a qualidade da tecnologia importada, modelo estabelecido por JK nos anos 50, e
desenvolvido pela ditadura militar, a partir de Costa e Silva. O paradigma
volta a ser a indústria automobilística aqui instalada, obsoleta, e mesmo assim
limitada a montadoras, sob o agasalho dos mecanismos protecionistas. Nenhuma
produção ou transferência de tecnologia, esta concentrada nas matrizes das
multinacionais, da informática aos tênis. A União investe fundamentalmente em
infraestrutura e no financiamento das empresas, especialmente via BNDES. E
investe em pesquisa, através das estatais ou do financiamento através de suas
agências de fomento. Mas o empresariado nacional entendia, como ainda agora,
que mais barato e mais seguro é pagar ‘royalties’.
Com o Estado neoliberal de FHC, acabaram-se as estatais e com elas o caro,
demorado e arriscado investimento em pesquisa. Ficaram, além da EMBAPA e das
universidades públicas, empresas como a Petrobras, investindo em tecnologia, de
que é exemplo seu sucesso em águas profundas. Mas desapareceram, estão
desaparecendo, vendidas a capitais estrangeiros, as empresas brasileiras que
poderiam operar no pré-sal. O risco é óbvio.
Outro exemplo de êxito na aplicação
de tecnologia é a EMBRAER, iniciativa estatal (da FAB) vitoriosa, vendida a
capitais franceses com dinheiro do BNDES. Mas se a arquitetura das aeronaves é
nossa, tanto quanto o planejamento empresarial e mercadológico, é preciso
lembrar que o [alumínio, o] aço, a aviônica (os instrumentos de voo), as turbinas (que representam cerca de 30% do valor de um avião) e, em alguns
casos, os trens de pouso, são importados dos EUA e as asas fabricadas na
Espanha.
Quanto ficou de tecnologia para nós?
Isso não é irrelevante. Como nossos aviões possuem componentes originários dos
EUA, a grande potência pode embargar qualquer venda a país que não conste de
sua lista de bons amigos. Assim, nossos aviões civis não puderam ser vendidos a
Cuba, e os Tucanos não puderam ser vendidos à Venezuela. Dois exemplos em
muitos. Aliás, o sucesso desses aviões na operação colombiana contra sítios das
FARC no Equador fizeram com que a EMBRAER se visse impedida de importar o
equipamento norte-americano HONEYWELL 33 EGIR, que permite a informação
inercial e informação para o altímetro radar, usados naquelas aeronaves (assim desvalorizadas), no caça F-5 (modernizado pela EMBRAER para emprego pela
FAB) e no Caça A-1 [AMX]. São poucos exemplos num rol centenário.
Nosso atraso – na produção científica, na aplicação tecnológica e na inovação– tem
uma medida: os investimentos em P&D.
Os EUA investem 2,7% de seu PIB, a China 1,4% e o Brasil 0,9%.
Poderemos ser, amanhã, uma nova
Austrália, alimentando o mundo rico (e os
ricos desse mundo) com carne e grãos, mas jamais seremos um país soberano
enquanto não formos uma potência tecnológica, aquela que domina o conhecimento
científico e o sabe aplicar e o aplica autonomamente.
Por que a Ásia cresce o dobro que a
América Latina, e cresce de maneira sustentada, enquanto a variação de nossos
PIBs assemelha-se ao gráfico de um eletrocardiograma? Por que, enquanto
engatinhamos, países que igualmente ingressaram tardiamente na revolução
industrial, como Coreia, Índia e China, nos superaram?
Por que o Brasil que pôde criar a EMBRAPA,
a Petrobras e a EMBRAER, ou seja, promover avanços pontuais, como a
produtividade do plantio de soja, não consegue estender essas experiências ao
conjunto da economia?
Por que não conseguimos agregar
valor à produção de grãos? Por que, exportando dois terços do ferro consumido
pelo mundo, somos responsáveis por apenas 2% do comércio de aço? Por que
importamos trilho –cuja produção não
exige tecnologia avançada, inovações ou patentes– e manufaturas
sofisticadas da China, país que há menos de 70 anos vivia num regime
semi-feudal e que só há pouco mais de duas décadas iniciou seu processo de
industrialização, para hoje ser reconhecido como a segunda potência econômica
do mundo?
Por que apenas em 2012 entrou em
operação a primeira fábrica de “chip” do
Brasil, e a Índia é, há mais de uma década, um dos maiores centros produtores
de “software”?
Essa mesma Índia, país teoricamente inviável — mal liberto do colonialismo inglês (1947), mal saído da perda do Paquistão (mantida, porém, a beligerância), dividido em castas, em centenas de línguas e
seitas religiosas, e com território relativamente escasso em face de sua
população– produz mais engenheiros e cientistas que toda a América Latina.
O que a experiência desses povos tem
a nos ensinar?
Todos esses países que se
desenvolveram tão rapidamente, conheceram o papel indutor do Estado. No Brasil
dos dois Fernando, esse papel foi reduzido a quase nada, e o arcaísmo
neoliberal impôs a desregulamentação, com nossa adesão (rompida no primeiro governo Lula) ao ‘consenso de Washington’. O desenvolvimento havia sido trocado por
um não-desenvolvimento (em nome do
combate à inflação) associado a profundo processo de desnacionalização,
este, é preciso reconhecer, ainda não estancado.
Nesse mesmo período, os países
asiáticos investiram na base educacional de sua força de trabalho, de que é
mero indicador a formação de engenheiros. O Brasil (praticamente 200 milhões de habitantes) forma 30 mil engenheiros
por ano. A Coreia (50 milhões de
habitantes) 80 mil.
Entre nós, o ensino de primeiro e
segundo graus é uma tragédia, e a massificação do ensino superior se faz
através da escola privada mercantil de baixíssima qualidade e nenhum
investimento em pesquisa (apenas um dado:
90% dos formados em Direito, um curso relativamente fácil e barato, são
reprovados no exame da OAB). Se todas as profissões exigissem exame prévio…
Enquanto no Brasil a regra para o ingresso do capital estrangeiro foi e é a de
porteira aberta e agradecida, na China, por exemplo, onde capital é bem-vindo,
mas é condicionado, ele precisa estar associado a um empreendimento local e tem
que aportar tecnologia.
Apesar dos esforços e avanços
recentes, é necessário reconhecer que ainda nos achamos a uma boa distância de
nos tornarmos um país de letrados e numerados (aí está o desempenho dos nossos egressos do ensino médio em português e
matemática…), e no que tange a projeto nacional e planejamento de longo
prazo (que implica opções estratégicas)
não temos mais que fragmentos, esboços e intenções. Em tal quadro, pouco
adianta pedir a norte-americanos, chineses e coreanos que se contenham na
defesa dos seus próprios interesses.”
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