Integrantes da Marinha francesa durante operação de resgate no Mediterrâneo na quarta-feira 20. "Heróis"?
Mediterrâneo, um mar de hipocrisia
Países ocidentais patrocinam guerras e intervenções, mas são apresentados como heróis na tragédia da imigração
Por Rossana Reis e Deisy Ventura, do "Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais"
"Nas últimas semanas, as notícias sobre a morte de milhares de seres humanos no Mar Mediterrâneo acabaram por revelar uma faceta muito desagradável de nós mesmos: a nossa infinita capacidade de eludir os fatos e tragar narrativas falsas, simplistas e unilaterais. A despeito dos acontecimentos, acalentamos nossa imaginação geopolítica na qual o papel dos heróis é invariavelmente representado pelos países ocidentais.
“Tráfico de pessoas!” – grita a chamada de programas de televisão, enquanto mostram negros sendo resgatados de navios indo a pique. Enquanto os náufragos recebem coletes alaranjados, o locutor descreve a ajuda humanitária da Europa, passando a seguir à imagem do elegante primeiro-ministro italiano a anunciar o seu plano para lidar com a crise: “afundar os barcos” por meio dos quais os candidatos a refúgio tentam chegar a Europa.
Eventualmente, algum dos passageiros é entrevistado para ilustrar as condições deploráveis nas quais se faz a travessia, mas os milhares de africanos mortos não merecem, por exemplo, o tratamento pessoal dado às vítimas do acidente que vitimou 150 pessoas com a queda do Airbus A320 da "Germanwings" na França. É raro encontrar alguma reportagem em que a “voz autorizada a explicar” as repetidas tragédias não seja europeia.
Soa como desfaçatez, porém, falar sobre os resgates ou os naufrágios no Mediterrâneo sem mencionar os milhões de pessoas atingidas por conflitos armados, notadamente as guerras na Síria e na Líbia, e sem registrar, sobretudo, o papel ativo, se não o protagonismo, dos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, no desenvolvimento desses conflitos – seja por razões geopolíticas ou econômicas.[E sem mencionar que os africanos e árabes já procuravam ir para a Europa, mas passaram a emigrar desesperadamente em muito maior número em decorrência do caos criado pelas guerras desencadeadas pelos Estados Unidos e países europeus da OTAN principalmente no Iraque, Líbia e Síria, por petróleo e outras razões geopolíticas e econômicas. A qualidade de vida deles apontada pela ONU era muitíssimo melhor antes de os EUA/OTAN intervirem militarmente para derrubar Saddam Hussein, Kaddafi e Bashar al-Assad].
Somente na Síria, desde 2011, já se contam 130 mil mortos; mais de 2 milhões de pessoas foram buscar abrigo em países vizinhos e acabaram em campos de refugiados; mais de 4 milhões de pessoas tiveram que abandonar suas casas. Na Líbia, onde em 2011 o ditador Muamar Kadafi foi assassinado em frente às câmaras de TV após uma intervenção da OTAN, "autorizada pela ONU", a continuidade dos conflitos ajuda a produzir mortos aos milhares e refugiados aos milhões [os EUA e OTAN tergiversaram e ampliaram a autorizada pela ONU "zona de exclusão aérea", passando ilegalmente a bombardeamentos em geral e farto provimento de armamento e capacitação para facções dos conflitos, que hoje fugiram do controle ocidental e lá promovem o caos].
Países ocidentais patrocinam guerras e intervenções, mas são apresentados como heróis na tragédia da imigração
Por Rossana Reis e Deisy Ventura, do "Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais"
"Nas últimas semanas, as notícias sobre a morte de milhares de seres humanos no Mar Mediterrâneo acabaram por revelar uma faceta muito desagradável de nós mesmos: a nossa infinita capacidade de eludir os fatos e tragar narrativas falsas, simplistas e unilaterais. A despeito dos acontecimentos, acalentamos nossa imaginação geopolítica na qual o papel dos heróis é invariavelmente representado pelos países ocidentais.
“Tráfico de pessoas!” – grita a chamada de programas de televisão, enquanto mostram negros sendo resgatados de navios indo a pique. Enquanto os náufragos recebem coletes alaranjados, o locutor descreve a ajuda humanitária da Europa, passando a seguir à imagem do elegante primeiro-ministro italiano a anunciar o seu plano para lidar com a crise: “afundar os barcos” por meio dos quais os candidatos a refúgio tentam chegar a Europa.
Eventualmente, algum dos passageiros é entrevistado para ilustrar as condições deploráveis nas quais se faz a travessia, mas os milhares de africanos mortos não merecem, por exemplo, o tratamento pessoal dado às vítimas do acidente que vitimou 150 pessoas com a queda do Airbus A320 da "Germanwings" na França. É raro encontrar alguma reportagem em que a “voz autorizada a explicar” as repetidas tragédias não seja europeia.
Soa como desfaçatez, porém, falar sobre os resgates ou os naufrágios no Mediterrâneo sem mencionar os milhões de pessoas atingidas por conflitos armados, notadamente as guerras na Síria e na Líbia, e sem registrar, sobretudo, o papel ativo, se não o protagonismo, dos países ocidentais, liderados pelos Estados Unidos, no desenvolvimento desses conflitos – seja por razões geopolíticas ou econômicas.[E sem mencionar que os africanos e árabes já procuravam ir para a Europa, mas passaram a emigrar desesperadamente em muito maior número em decorrência do caos criado pelas guerras desencadeadas pelos Estados Unidos e países europeus da OTAN principalmente no Iraque, Líbia e Síria, por petróleo e outras razões geopolíticas e econômicas. A qualidade de vida deles apontada pela ONU era muitíssimo melhor antes de os EUA/OTAN intervirem militarmente para derrubar Saddam Hussein, Kaddafi e Bashar al-Assad].
Somente na Síria, desde 2011, já se contam 130 mil mortos; mais de 2 milhões de pessoas foram buscar abrigo em países vizinhos e acabaram em campos de refugiados; mais de 4 milhões de pessoas tiveram que abandonar suas casas. Na Líbia, onde em 2011 o ditador Muamar Kadafi foi assassinado em frente às câmaras de TV após uma intervenção da OTAN, "autorizada pela ONU", a continuidade dos conflitos ajuda a produzir mortos aos milhares e refugiados aos milhões [os EUA e OTAN tergiversaram e ampliaram a autorizada pela ONU "zona de exclusão aérea", passando ilegalmente a bombardeamentos em geral e farto provimento de armamento e capacitação para facções dos conflitos, que hoje fugiram do controle ocidental e lá promovem o caos].
Se pudesse, você não tentaria fugir de situação semelhante? Mas são poucas as pessoas que sobrevivem a essa dura realidade e conseguem dinheiro suficiente para tentar escapar pelas rotas do Mar Mediterrâneo que levam à Europa. Entre aqueles que chegam, um número ainda mais reduzido consegue ter reconhecida a sua situação como refugiado – o que torna possível pensar em reconstruir a vida, pelo menos enquanto a situação em seus países de origem não se estabiliza.
A maior parte das pessoas aguarda “num centro de detenção para imigrantes” ou é mandada de volta ao lugar de origem, em um processo cujas garantias jurídicas oferecidas são mínimas. Os que conseguem permanecer na Europa, em geral, servem como bodes expiatórios de um mal-estar cultural profundo, de uma crise de representação política sem precedentes e da crise econômica. Já o quinhão de responsabilidade da Europa nos desastres humanitários que os empurram de suas terras ainda está longe de ser plenamente apurada.
Isso ocorre porque, ao mesmo tempo em que patrocinam guerras em outros continentes, os países europeus tornam mais restritivas suas regras para concessão de refúgio. Como cortina de fumaça, os líderes do Velho Continente promovem operações humanitárias para resgatar os possíveis imigrantes das mãos dos “verdadeiros culpados pela crise” [sic], os traficantes de pessoas que são majoritariamente africanos, além de tomar as devidas providências para que a travessia não seja feita, em nenhuma circunstância. Vale a pena lembrar que, antes da eclosão da mais recente crise, essa já era uma rota bastante utilizada, e igualmente perigosa. Ainda assim, o governo italiano proibiu os barcos de pescadores da Sicília de prestar ajuda a qualquer tipo de embarcação em situação de risco, sob risco de serem acusados de “cumplicidade com a imigração ilegal”.
Ao longo dos anos, a combinação de “intervenções humanitárias” [bombardeamentos?] mal pensadas e mal conduzidas com políticas restritivas e discriminatórias de gestão de fluxos migratórios e de refugiados pela União Europeia vem provocando a morte de milhares de seres humanos no Mediterrâneo, e também vem afogando a todos nós num mar de hipocrisia. Nessa triste fábula da política contemporânea, os únicos heróis são aqueles que conseguem sobreviver às guerras, à intolerância, à política europeia, às ondas e à nossa apatia."
FONTE: escrito por Rossana Reis e Deisy Ventura, professoras da Universidade de São Paulo e integrantes do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais/GR-RI. Artigo publicado na revista "CartaCapital" (http://www.cartacapital.com.br/blogs/blog-do-grri/mediterraneo-um-mar-de-hipocrisia-2718.html).[Trechos entre colchetes em azul acrescentados por este blog 'democracia&política']
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