Por Marcelo Gleiser
“A beleza de uma jogada vem do uso
inusitado da criatividade sob regras predeterminadas.
Certos resultados da matemática têm
a força de verdades absolutas, independentemente de qualquer interpretação ou
contexto.
Quando afirmamos que 2+2=4 sabemos
que isso sempre será correto, ao menos para entidades inteligentes capazes de
contar. Saindo da aritmética para a álgebra, dada uma equação, por exemplo, x +
3 = 4, sabemos que só existe uma solução para x, x = 1.
O mesmo se dá com a geometria
euclidiana, que aprendemos na escola. Armados de certos axiomas (asserções tomadas como verdadeiras que
servem como ponto de partida para a elaboração de resultados), podemos
provar uma série de resultados que são únicos.
Por exemplo, que a soma dos ângulos
internos de um triângulo é 180 graus ou que a circunferência de um círculo de
raio R é 2piR.
Esse tipo de aplicação cristalina da
razão traz profunda sensação de controle: dadas
certas regras, sabemos construir resultados verdadeiros. A tentação de
extrapolar a matemática como sinônimo de verdade torna-se enorme: se a natureza
obedece a leis matemáticas, devemos poder entendê-la de forma absoluta. Mas
será que podemos afirmar que a matemática é critério de verdade no mundo natural?
O poder da matemática vem da sua
independência de contexto. Mesmo que os conceitos tenham sido derivados da
necessidade de medir distâncias e intervalos de tempo ou de contar cabeças de
gado e calcular o seu valor, uma vez criados, podem ser usados em qualquer
situação adequada: um triângulo é um
triângulo aqui ou em Marte.
O exercício da matemática é um jogo
que segue regras predeterminadas. A inovação vem da liberdade controlada
propiciada pelas regras, aliada à criatividade humana. O mesmo ocorre num jogo
de xadrez: as regras são rígidas, mas
duas partidas jamais são iguais.
O mesmo ocorre no futebol. O que
torna esportes empolgantes é a variabilidade que existe a partir das mesmas
regras. Se jogos se repetissem, esportes perderiam a graça. A diversão vem da
surpresa.
Na matemática e nos esportes, o novo
vem de uma estrutura rígida. Ambos são expressão de uma criatividade
controlada. A beleza numa jogada vem do uso inusitado dessa criatividade dentro
dos padrões permitidos pelas regras. Gol de mão não vale, mas um gol de
bicicleta bem no ângulo é sensacional.
Na matemática, pode-se inventar
mundos estranhos, geometrias em mais de três dimensões e noções diferentes de
infinito ou conceitos como pontos e linhas, objetos sem volume que determinam
as propriedades do espaço.
Essas regras e abstrações são
criações da mente humana, ferramentas que usamos para ordenar a realidade que
percebemos.
Da mesma forma que um partida de
futebol só pode ser jogada se as regras forem seguidas, as "verdades"
da matemática só fazem sentido dentro da estrutura em que foram criadas. Como
nós criamos estas estruturas, a matemática é criação nossa, do nosso jeito de
pensar o mundo. Outras inteligências podem inventar a matemática delas, e
dicionários podem ser criados traduzindo as "verdades" de cada um.
A diferença entre a matemática e a
natureza é que esta segue apenas as suas regras.”
FONTE: escrito
por Marcelo Gleiser,
professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor de
"Criação Imperfeita". Artigo publicado na “Folha de São Paulo” (http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saudeciencia/97798-matematica-e-futebol.shtml). [Imagem do Google adicionada por este blog ‘democracia&política’].
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