Por Eduardo Guimarães
“Não se pode dizer que seja
exatamente uma surpresa o fenômeno que passou a ser visto após o anúncio da
morte de Hugo Chávez. Logo após esse anúncio, o título do texto aqui publicado
já dizia que o venezuelano não morrera, mas que, antes, acabara de nascer – ou renascer –, agora como mito.
O fenômeno em tela é o de o
ex-presidente, depois de morto, estar sofrendo um nível de ataques na mídia
americanizada do Brasil – e nas de tantos
outros países latino-americanos – que poucas vezes se viu quando estava vivo.
Foi surpreendente, porém, a
virulência com que a edição do “Jornal da Globo” que foi ao ar entre a noite da
última terça-feira e o começo da madrugada de quarta tratou o presidente
recém-falecido.
O “Jornal Nacional”, poucas horas
antes, fugiu de mostrar os avanços sociais na Venezuela durante a era Chávez,
mas não enveredou pela hidrofobia sem limites que se viu no “Jornal da Globo” –
telejornal destinado ao público que dorme e acorda mais tarde e que tem maior
poder aquisitivo.
Abaixo, o texto hidrófobo lido pelo
âncora do “Jornal da Globo” Willian Waack sobre um ser humano que acabara de
perder a vida. Um texto desrespeitoso à Venezuela e à parcela esmagadora de seu
povo que apoiou o ex-presidente até seu último suspiro e que continua apoiando,
agora na figura de Nicolás Maduro, provável herdeiro político de Chávez:
—–
JORNAL DA GLOBO
Willian Waack
5 de março de 2013
“Hugo Chávez nunca reclamou quando o
chamaram de caudilho, embora preferisse o título de comandante revolucionário.
Como todo caudilho sul-americano, a revolução era ele.
O dono de um tal de socialismo
bolivariano, que ninguém, nem mesmo Chávez, foi jamais capaz de explicar.
Começou a carreira como muitos militares do continente, dando um golpe,
descontente com políticos e elites tradicionais, que jamais, no caso da
Venezuela, foram capazes de distribuir a grande riqueza do país: petróleo e
energia.
Chávez fracassou na primeira tentativa de
chegar ao poder, em 1992, mas não desistiu. Escolheu a marcha através das
instituições formais da democracia como maneira de atacar a própria democracia,
que, no entendimento dele, o caudilho bolivariano, só servia apenas aos
interesses de quem ele declarava seus inimigos.
Em 1999, eleito presidente, Chávez não
perdeu tempo. Convocou uma Assembleia Nacional Constituinte com a qual forjou
as ferramentas que o manteriam no poder até o fim da vida.
Um de seus principais alvos era a
imprensa independente: Hugo Chávez ganhou um lugar na já repleta história de
caudilhos sul-americanos incapazes de conviver com o contraditório e a
liberdade de imprensa.
Para ele, pouco importava: admirador dos
irmãos Castro e do experimento ditatorial de Cuba, Chávez achava que a
revolução social que tinha como propósito justificaria o emprego de qualquer
meio. Foi beneficiado por uma extraordinária conjuntura internacional, que
favoreceu a principal — quase única — fonte de renda do país: o petróleo.
Chávez transformou a então bem gerida e
produtiva PDVSA, a estatal do petróleo, em um braço político dedicado ao
distributivismo típico dos caudilhos preocupados apenas com a própria
popularidade.
A indústria venezuelana ficou pelo
caminho, a corrupção tornou-se ainda pior do que no regime político anterior, a
inflação ficou sendo uma das maiores da América do Sul, mas Chávez continuava
repetindo: “adelante siempre”.
Fez escola entre outros países ricos em
energia, como Equador e Bolívia, onde conquistou adeptos. Tratou de exportar
seu modelo para outro país rico na história em caudilhos, a Argentina.
Declarou os Estados Unidos da América
como o pior inimigo da Venezuela. Protagonizou um dos piores momentos da
Assembleia Geral das Nações Unidas, ao dizer que onde o então presidente
americano George W. Bush havia acabado de discursar ainda prevalecia o cheiro
de enxofre, o cheiro do diabo.
Sua maior desmoralização internacional,
no entanto, ocorreu nas mãos do rei da Espanha, Juan Carlos, que o mandou se
calar. Chávez quase foi derrubado em 2002 por um mal-articulado golpe militar
no qual ele identificou a mão do império, a mão dos Estados Unidos.
Rompeu relações diplomáticas com Israel e
estreitou laços com o Irã. Tornou-se muito popular em Moscou com as pesadas
compras de armas, e um inimigo da vizinha Colômbia, que o acusava de abrigar,
armar e ajudar os narcoguerrilheiros das Farc.
Encontrou no governo petista do Brasil um
aliado confortável em várias iniciativas no continente, como a expansão do
Mercosul, através de um truque diplomático articulado contra o Paraguai.
Faltou, porém, com a palavra dada a um de
seus maiores amigos, o ex-presidente Lula, com quem combinou construir uma
refinaria em Pernambuco. Até hoje, o aporte financeiro prometido por Chávez não
se materializou, obrigando a Petrobras a tocar sozinha o projeto.
Ajudado por uma oposição desarticulada,
desmoralizada e vítima também de perseguições, Chávez dominou a Venezuela, mas
não conseguiu realizar o tal do socialismo bolivariano, inspirado na figura de
Simon Bolívar, que ele mandou exumar e venerava como um santo.
Como todo caudilho, embevecido de si mesmo,
Chávez detinha a última palavra em qualquer assunto. Tinha a certeza de que seu
nome, e a inspiração aos camisas vermelhas, seria o suficiente para levar a
Venezuela a um grande futuro, pelo qual o país — dividido, traumatizado,
empobrecido e violento — continua esperando.”
—–
Um aspecto interessante desse texto
lido por Waack no ar é que, a certa altura, parece lamentar o insucesso da
tentativa de golpe de Estado contra Chávez em 2002 ao dizer que ele “Quase foi derrubado em 2002 por um
mal-articulado golpe militar no qual ele identificou a mão do império, a mão
dos Estados Unidos”.
A quantidade de distorções dos fatos
contida na cobertura da Globo e do resto da grande mídia sobre o que foi o
governo Chávez, é imensurável. Essa afirmação de que foi o venezuelano que
“identificou” a interferência dos EUA na tentativa de golpe que sofreu, é
hilária.
A tentativa de golpe contra Chávez
em 2002 foi publicamente condenada pelas nações latino-americanas (os presidentes do Grupo do Rio se reuniram
em San José, Costa Rica, na época, e emitiram um comunicado conjunto de repúdio
ao golpe) e pelas organizações internacionais.
Apenas os Estados Unidos e a Espanha
rapidamente reconheceram o governo de fato da Venezuela, agora presidido pelo
rico empresário Pedro Carmona, presidente da Fiesp venezuelana, a
“Fedecámaras”.
Como primeira medida, o “presidente”
Carmona fechou o Congresso e a Suprema Corte de Justiça do país e reprimiu, com
tropas leais, as manifestações pró-Chávez que tomaram Caracas, com a população
descendo dos morros que circundam a cidade para irem protestar diante do
Palácio Miraflores, sede do governo venezuelano.
E para que fique absolutamente claro
que a participação dos EUA no golpe não foi uma invenção de Chávez, basta ver
notícia que o portal da mesma Globo na internet, o G1, publicou em 2009. Leia,
abaixo, trecho da matéria.
—–
JIMMY CARTER DIZ QUE EUA SABIAM DE GOLPE
CONTRA HUGO CHÁVEZ EM 2002
G1, 20 de setembro de 2009
“Os Estados Unidos estavam sabendo do
golpe que quase derrubou o presidente venezuelano Hugo Chávez em 2002, e talvez
tenham até apoiado a frustrada tentativa, declarou o ex-presidente americano
Jimmy Carter em entrevista publicada neste domingo (20) pelo jornal colombiano
“El Tiempo”.
“Acho que não há dúvidas sobre o fato de
que em 2002 os Estados Unidos estavam sabendo, ou tiveram participação direta,
no golpe de Estado”, disse Carter ao jornal. Assim, as críticas de Chávez
contra os Estados Unidos “são legítimas”, destacou o ex-dirigente democrata,
que recebeu o Prêmio Nobel da Paz em 2002.”
(…)
Parece-me material suficiente para
que, ao menos, a “Globo” não atribuísse só a Chávez a acusação de que os
Estados Unidos foram parte integrante da tentativa fracassada de golpe em 2002
na Venezuela, certo?
É claro que o que o “Jornal da Globo”
apresentou não foi uma reportagem, mas um editorial capenga, cheio de furos e
que, se fosse publicado em uma televisão norte-americana, seria passível de ser
contestado no ar por qualquer cidadão que se sentisse prejudicado, como
determina o “Federal Communications Commision” (FCC), órgão regulador das
comunicações eletrônicas naquele país.
Mas isso é nos EUA, que, como todos
sabem, é um país “marxista”…
Voltando à dura realidade
brasileira, no mesmo “Jornal da Globo” ainda tivemos Arnaldo Jabor com mais
opinião e ainda menos fatos, vociferando sem parar contra Chávez, omitindo,
distorcendo, inventando etc.
Nos blogs e sites, os antichavistas
pareceram ter enlouquecido com a imortalidade recém-adquirida por Chávez. Virulentos,
pornográficos, hidrófobos ao impensável, mentecaptos de todas as idades e de
todas as regiões do país tentavam se superar em palavrões, insultos e
praguejamentos diversos contra um ser humano que acabara de falecer e que,
segundo informações minimizadas e distorcidas da “Folha de São Paulo” do dia
seguinte, reduziu a pobreza na Venezuela de 20% para 7%.
Tanto o telejornalismo da “Globo”
quanto os grandes jornais impressos do dia seguinte simplesmente não deram uma
linha sobre o fato de que Chávez conseguiu os maiores avanços em termos de
redução da pobreza, da miséria e de distribuição de renda na América Latina,
sem falar do feito histórico de ter acabado com o analfabetismo em seu país,
conforme referendo público da Unesco.
A impressão que o noticiário sobre a
morte de Chávez deu a qualquer um que assistiu ou leu – mesmo às pessoas
despolitizadas –, foi de surpresa. Muitos não conseguiram entender a razão de
tanto ódio contra alguém que acabara de deixar a vida para entrar na história.
A explicação, porém, já foi dada
aqui mesmo poucas horas após o falecimento de Hugo Rafael Chávez Frías: morto, está mais poderoso do que nunca.
É relativamente simples destruir os vivos – ainda
que, às vezes, como no caso de Chávez ou do próprio Lula, nem tanto. Mas é
praticamente impossível destruir um mito.
O que se viu e ainda será visto nos
próximos dias, semanas e até anos em termos de hidrofobia político-ideológica
contra o falecido Chávez, portanto, não passa de um medo absolutamente visceral
que a direita sente de um homem que ergueu a América Latina social e
economicamente.”
FONTE: escrito por Eduardo Guimarães em
seu blog “Cidadania” (http://www.blogdacidadania.com.br/2013/03/morto-chavez-e-mais-atacado-do-que-quando-estava-vivo/).
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