Este blog já postou muitos textos sobre a grave crise desencadeada na América do Sul por conta da invasão militar colombiana no território do Equador com o explícito apoio político e material dos Estados Unidos.
O jornal “Valor” de hoje publica o muito bom artigo de autoria de Wanderley Guilherme dos Santos, membro da Academia Brasileira de Ciências. O título do autor é o mesmo desta postagem. Transcrevo (entre parênteses nossos):
“Colômbia, Equador e a teoria da coincidência”
Pepe Casals
”Houve até quem não percebesse a crise Colômbia versus Equador. E a cenografia não foi modesta: a Colômbia violou o território equatoriano em manobra de busca e destruição de membros das Farc, o Equador ameaçou responder militarmente e a Venezuela, por via das dúvidas, segundo seu presidente, mobilizou tropas na região fronteiriça ao solo colombiano.
Isso em menos de 24 horas e sem sinais anteriores do que poderia vir.
Tensão no pedaço, alguns mortos, entre eles um alto comandante das Farc e, surpreendente notícia, universitários mexicanos.
Pois em menos de uma semana, Brasil, Chile e Argentina promoveram reuniões pacificadoras, isolaram o presidente venezuelano, Hugo Chávez, e dispensaram a intermediação americana. Em um piscar de olhos, para nossa perplexidade, leitores comuns, estava tudo terminado com apertos de mão, sorrisos de boa vontade e abraços gerais em reunião hospedada pela República Dominicana. Quem tirou uma semana de férias no período não encontrará pista ou rastro do acontecido no noticiário dos jornais.
Esquisito.
Naturalmente, a diplomacia brasileira e a intervenção do presidente Luiz Inácio (Lula) foram aplaudidas pela rapidez, discrição e eficiência por uns, enquanto outros consideraram mofina a posição brasileira. Nas televisões e crônicas (da grande mídia brasileira) a invasão colombiana de território do Equador foi transformada em tibieza do Brasil na condenação das Farc. Compreensível e esperado.
Uma quinzena depois, somos informados que Condoleezza Rice, secretária de Estado responsável pela política externa americana, desembarcou no Brasil, saudosa da música baiana, encontrou-se com o presidente brasileiro e voltou para casa sem mais aquela. Pouco transpirou e o assunto desapareceu. Quem se esbaldou em duas semanas de férias jamais saberá quanto a secretária é apaixonada por Carlinhos Brown. Por sua música, quero dizer.
Esquisito.
E mais esquisito ainda que, há pouco, os mesmos colombianos tenham entrado por equívoco e saído rapidinho da Amazônia brasileira.
A interpretação dura de todos esses episódios sustenta a hipótese de que mais dia, menos dia, os Estados Unidos pretendem (ou precisam) começar aqui, na América do Sul, aquele tipo de guerra localizada que já não conseguem fazer na Europa e, em breve, terão dificuldade em iniciar no Oriente, próximo ou distante. Com a revelação oficial de que o Iraque não mantinha relações com a Al-Qaeda, depois de também se haver confirmado a inexistência das armas de extermínio em massa anunciadas pelo presidente Bush, o governo americano deverá requisitar todo o seu poder de persuasão para vender a teoria da agressão preventiva por aquelas bandas.
Mas essa foi a teoria adotada pela Colômbia, embora bravamente negada pelos desculpadores nativos da invasão colombiana.
Segundo a lógica da interpretação, a Colômbia é, e provavelmente continuará a ser, um agente laranja da política externa dos Estados Unidos. A agressão relâmpago contra o Equador teria, na verdade, o objetivo de provocar Hugo Chávez, o qual caiu como um patinho, criando a oportunidade para nova tentativa de colocar a tese das fronteiras flexíveis na agenda continental. Movimentar-se militarmente era tudo o que os belicosos e seus infiltrados desejavam.
A conseqüência foi deixar Brasil, Chile e Argentina na difícil situação de condenar a violência colombiana sem prestar nenhum tipo de solidariedade às Farc. Os analistas entendem que, assim como se acusava Cuba, nas décadas de 1970 e 80, de tentar exportar revoluções, hoje a Colômbia, de fato, exportaria provocações, dando margem a que os formuladores da política externa americana insistam em difundir a legitimidade da teoria da agressão preventiva.
(Para nós aplicarmos essa teoria dos EUA) é óbvio que o Brasil precisaria se transformar em uma potência militar de grande porte para perfilhar a teoria sem correr o risco de se tornar ridículo.
Como se sabe, o Paraguai, por exemplo, sofre o assédio dos contrabandistas brasileiros que por lá buscam refúgio. É na Bolívia que os narcotraficantes nacionais encontram as conexões necessárias ao florescimento de seus negócios. E a própria Colômbia sedia as matrizes de algumas casas importadoras de pó brasileiras.
Para ser um paladino da teoria da agressão preventiva o Brasil precisaria entrar em conflito imediato com aqueles três países. Além de trágico, seria cômico presenciar a Colômbia sendo violentada pelas mesmas razões que a levariam, simultaneamente, à invasão do Equador e, quiçá, da Venezuela.
Espremendo um pouco o conceito (norte-americano), talvez nem o Uruguai escapasse da ira nacional, visto que seus cassinos acolhem hospitaleiramente nossos contraventores do "jogo do bicho". E se os serviços de inteligência brasileiros forem tão eficientes quanto os americanos descobrirão armas de morticínio generalizado na Argentina e no Chile.
Se o cenário é delirante, resulta do delírio da teoria (dos EUA) que o justifica.
Pode ter sido uma coincidência, sem dúvida, que a Colômbia haja transgredido normas internacionais quando alguns processos para libertação de reféns das Farc estavam sendo bem-sucedidos.
Outra coincidência, talvez, o sonho do presidente Álvaro Uribe de obter modificação constitucional que o permita concorrer a um terceiro mandato consecutivo.
Coincidência, quem sabe, a crise de nostalgia da secretária de Estado Condoleezza Rice, impelida para a Bahia a pretexto de conversar com Lula em Brasília. Ou vice-versa.
Enfim, coincidência o equívoco colombiano de ingressar em solo amazônico. Pode ser, mas...
Coincidência é um desses estranhos fenômenos cuja existência não pode ser verificada por testemunho independente no momento em que ocorre, só depois. Quando dois carros se chocam em um cruzamento, houve, por certo, além de outros eventos, a coincidência de se dirigirem ao mesmo espaço ao mesmo tempo. Sabemos disso ao assistir a algum vídeo. Nosso testemunho é isento. A afirmação dos dois motoristas de que houve coincidência não pode ser aceita como neutra, pois ambos foram participantes do fenômeno. O mesmo pode ser dito do operador de vídeo: ele só filmou a coincidência porque, coincidentemente, estava no exato local no mesmo instante, não sendo uma testemunha estranha ao fenômeno. Vale a interdição para todos os presentes ao acontecimento, pois fazem parte dele e a reivindicação de que expõem a verdade fica comprometida pelo fato de que, primeiro, o interlocutor deve aceitar que a testemunha, por coincidência, estava presente quando houve a coincidência original. Ou seja, é necessário que o interlocutor aceite o que está posto em dúvida. Por isso, coincidências são corroboradas a posteriori, por terceiros, os que não estavam lá quando ocorreram, mas possuem meios de revê-las.
O número de coincidências na América do Sul, registradas para proveito próprio e sem comprovação independente, é crescente. Mapas erroneamente demarcados, trote armamentista de alguns países, eu não chamaria de corrida, episódios fugidios de embates fronteiriços e, agora, a escandalosa invasão do Equador, indícios de um mal-estar cuja origem é escorregadia, todos eles.
A proposta brasileira para a criação de uma organização dos Estados sul-americanos é prudente e cautelar. Assegura aos vizinhos que a política externa do país continua sendo de negociação e nada mais apropriado do que o surgimento de fóruns em que as negociações se dêem.
Bem melhor do que esperar que alguém comprove que, de fato, não houve coincidência alguma.”
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