A grande mídia brasileira destacou positivamente, ontem e hoje, o “panelaço” realizado pela população de Buenos Aires. A razão da manifestação seria protestar contra as medidas tomadas pelo governo de Cristina Kirchner neste momento de crise de alimentos, de privilegiar o abastecimento interno com produtos agropecuários, em detrimento de exportações.
Pareceu-me estranho a população se mobilizar por aquele motivo. A aparência dos manifestantes mostrados nas TV era de pertencentes à classe média superior.
Por que aquele segmento da população, com o destaque, o estímulo e o enaltecimento das grandes mídias argentina e brasileira, saiu às ruas?
Para compreendermos melhor, é oportuno fazer uma retrospectiva dos últimos 15 anos na Argentina e no Brasil. Recorrerei a textos deste blog já publicados, mas convém repetí-los, pois muitos visitantes não o leram.
A COMPETIÇÃO NEOLIBERAL ENTRE O BRASIL E A ARGENTINA
Na década de 90, o Brasil e a Argentina estavam eufóricos em competir (Menem x Collor e Menen x FHC) quem fazia melhor e mais rápido as lições de casa das medidas ditas neoliberais prescritas desde 1990 pelos EUA em Washington.
Fomos por isso muito elogiados em Wall Street. Segundo Rodrik, D., Journal of Economic Literature, EUA, mar. 1996, os dois países e “os latino-americanos em geral, no tocante à decorrente abertura unilateral de suas economias, realizaram em um ano (1995) o que os asiáticos fizeram em trinta anos, surpreendendo e ganhando muitos elogios até dos propugnadores das medidas, via FMI e Banco Mundial”.
O BRASIL
A determinação política brasileira de concordar radicalmente com aquilo tudo era muito forte. O Presidente FHC, com o total respaldo do PSDB e do PFL (DEM), expressou em abril de 1995, com grande vigor e determinação: “Vamos abrir. Vamos privatizar também. Não nos iludamos. Não vai bastar a concessão (de serviços públicos). Não vai bastar a joint-venture, a parceria. Nós vamos ter que abrir...As privatizações serão aceleradas...Está prevista também a participação de capital estrangeiro na privatização de bancos oficiais, inclusive os estaduais. Não me refiro aqui a parcerias, mas à venda de controle acionário.” (Coletânea oficial de “Pronunciamentos do PR”, 1995).
Um fato que achei audaz, perigoso para o futuro do Brasil, mas que na época pouca repercussão teve, foi a decisão de FHC de abrir para empresas estrangeiras a exploração e a apropriação do petróleo brasileiro (Lei no 9.478/1997).
Naqueles anos, havia no Brasil uma generalizada e fortíssima compulsão de abrir. Isso partia tanto do setor governamental como da grande parte da elite e da nossa imprensa. Era a vontade de conceder o acesso ao nosso mercado sem exigir reciprocidades dos EUA e das demais potências. Era dar por paixão cega de dar, pelas virtudes do neoliberalismo unilateral. Perplexante.
Deve ser reconhecido que o nosso presidente FHC passou a ser muito admirado pelos líderes das grandes potências, pelos grandes empresários e banqueiros estrangeiros e por toda a grande mídia. A imprensa nacional, para a ufania de muitos brasileiros, sempre jactava que no exterior o achavam “muito culto, um intelectual, preparado, fala vários idiomas, é ‘chic’, tem uma elegância cosmopolita”. Segundo a imprensa, também eram muito admirados lá fora o nosso Ministro da Fazenda e o Presidente do Banco Central.
Muitos brasileiros e órgãos da grande imprensa, até hoje, estão orgulhosos e saudosos dos tantos elogios e homenagens que aqueles nossos dirigentes recebiam no Primeiro Mundo.
AS REELEIÇÕES
Menen e FHC, para terem mais tempo para implantar, mais profundamente ainda, aquelas “importantes medidas do agrado do mercado internacional”, empenharam grande parte do tempo e do esforço político dos seus países em ampliar a base parlamentar para alterar a Constituição, visando a permitir as suas próprias reeleições.
Conseguiram. Não foi fácil. No Brasil, muitos parlamentares foram acusados, mas apenas dois cassados, por vender votos favoráveis à reeleição. Nada se soube sobre quem comprava aqueles dispendiosos votos (US$ 150 mil cada, segundo a imprensa), nem com recursos de onde. Não prosperou a idéia de uma investigação parlamentar (CPI) para o assunto. A imprensa também não deu a devida importância, o assunto morreu e não ocorreram outras averiguações.
Alguns dias após a reeleição, o Real, que vinha sendo mantido artificialmente valorizado com grande prejuízo para o Brasil, inclusive assim facilitando as importações e inviabilizando as exportações, despencou à metade. A inflação imediatamente tornou a subir, as taxas de juros dispararam para níveis de meliantes (cerca de 45% a Selic).
A grande aprovação popular ao reeleito, assim, caiu em poucos meses a 23%.
O FMI e os grandes bancos, como o Citibank, no entanto, queriam adicionais medidas liberalizadoras brasileiras e, por isso, apoiavam o nosso governo e o argentino. Emprestaram ao Brasil quarenta e dois bilhões de dólares, para que pudéssemos continuar pagando os elevados juros da enorme e muito crescente dívida externa e não alterássemos o curso do aprofundamento no Brasil do modelo que muitos chamavam de neoliberal. (não me interessa discutir sobre apelidos do modelo).
O GOL DO BRASIL MUITO ELOGIADO NO EXTERIOR
O Brasil marcou, logo após, um tento surpreendente e inédito no mundo, que foi muito elogiado no exterior e aqui também. Foi ao passar 100% do controle dos serviços de telecomunicações de longa distância do país (a EMBRATEL) para somente uma empresa norte-americana! Foi para a pré-concordatária MCI, ex-WorldCom, que veio a ser famosa no mundo pelas gigantescas fraudes contábeis em seus balanços.
Aquela decisão brasileira, inusitada no mundo e ousada, de em 1998 tudo passar para os norte-americanos da MCI, até as nossas comunicações militares sigilosas (banda X) e a propriedade e o controle dos satélites que serviam ao Brasil, foi designada pelo nosso governo, modestamente, como disse FHC, simples “moderna flexibilização do monopólio estatal no setor das telecomunicações”. Obteve, por demais, até o apoio do então Ministro-Chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (EMFA)!
A ARGENTINA
Voltemos à emocionante competição neoliberal Menen x FHC. Menen, por intermédio do seu Ministro das Relações Exteriores (Guido di Tella) não quis ficar atrás do Brasil naquela partida e também ousou desmesuradamente. Confessou, com grande coragem, que aquele país desejava e estava em “relações carnais” com os EUA, o que levou a inteira nação argentina a posições constrangedoras.
O pagamento para aquelas relações não lhe veio a ser compensador. Ela foi deixada em estado lastimável, apesar do humilhante alinhamento incondicional e automático com os EUA e de, exemplarmente, ter obedecido a todos os desejos e às prescrições das agências internacionais de empréstimos, sendo alvo de constantes elogios do G-7, do FMI e do então presidente Clinton.
Mesmo com a Argentina ainda sofrendo alguns anos após, o presidente George W. Bush ironizou: a cura de suas feridas “é problema dela, que desse modo quis soberanamente, e näo do contribuinte americano”.
O único mimo que a Argentina recebeu foi um enfeitado diploma de “aliada dos EUA extra-OTAN” honorária (major non-Nato ally - MNNA), sem qualquer benefício prático significativo.
Assim, Menen venceu FHC por pequena diferença, naquela acirrada competição.
Contudo, ao final de seus respectivos extensos mandatos, Menen (1989-1999) e FHC (1994-2002) ainda tinham, e têm, muitos admiradores influentes.
Tanto Menen quanto FHC saíram orgulhosos e com planos de passarem enaltecidos para a história e, quem sabe, voltar ao governo. Publicou-se que cada um portara bens, documentos e presentes recebidos no longo exercício do cargo. Não para eles, segundo a imprensa. Foi para criarem uma grande ONG, cada um no seu país, e nela colocar aqueles bens.
FHC adiantou-se. No Brasil, foi inaugurado já em 23/05/2004 o luxuoso “instituto Fernando Henrique Cardoso” (iFHC; grafia dessa forma pedida por ele à imprensa). É uma ONG e, segundo divulgado pelo instituto e pela grande mídia, não é destinada a ser plataforma política ou a cultuar a imagem e obras do nosso ex-presidente. É sem fins lucrativos, de utilidade pública, não visa a benefícios pessoais. Para sustentá-la, somente em um jantar alguns empresários lhe doaram dez milhões de dólares (FSP, 19/05/2004). Para cuidar da aplicação das grandes somas recebidas, passou a contar com a ajuda do seu ex-presidente do Banco Central, Armínio Fraga.
RESULTADOS PARA OS EUA DAQUELA COMPETIÇÃO
Para os EUA (e para os outros países industrializados que vieram na esteira, aproveitando a nossa abertura), tudo aquilo implantado no Brasil, na Argentina e na América Latina em geral na década de 90 deu muito certo.
Para os norte-americanos, logo acarretou muitos novos empregos de alta qualificação. Já no terceiro ano da nossa "mudança modernizante", 1993, ainda no reflexo do governo Collor, a América Latina comprava mais dos EUA do que lá compravam o Japão ou a Alemanha (US$ 65 bilhões). A taxa de crescimento das exportações dos EUA para a América Latina foi três vezes maior do que para todas as demais regiões do planeta.
Aquilo crescia exponencialmente. Em 1997, por exemplo, o nosso déficit com os EUA no comércio bilateral já dobrava em relação ao ano anterior. O comércio com os norte-americanos já respondia por 70% do déficit comercial brasileiro.
Havia, por outro lado, somente insignificantes aumentos das nossas exportações para os EUA, em especial por causa das barreiras (tarifas, quotas, subsídios) decorrentes dos “lobbies” de diversos setores da economia estadunidense, que se protegiam com pressões eleitorais sobre o Congresso e ações diretas sobre o Executivo americano.
Se ameaçássemos aqui fazer o mesmo, logo vinham as reações internas, bradando que haveria a contrariedade do governo dos EUA e a nossa obsolescência tecnológica, se diminuíssemos ou taxássemos a importação de produtos norte-americanos.
Também, se esboçássemos qualquer medida protecionista, logo se tornavam iminentes para o Brasil as severas penalidades e retaliações dos países do G-7 e dos organismos internacionais reguladores do comércio e das finanças.
Após Menen e FHC e até hoje, os EUA têm influentes e ardorosos defensores no Brasil e na Argentina.
O jornal “Folha de S. Paulo”, em 19/04/2004, emitiu a sua “opinião” sobre posicionamentos do novo governo brasileiro (Lula). Por exemplo, os contrários à invasão do Iraque e os contrários a algumas imposições dos Estados Unidos para a ALCA. O jornal divulgou: ...”o governo agarra-se a picuinhas, supostamente com alto valor moral, apenas para contrariar os EUA”... “o Brasil, mesmo acusando as políticas de Washington, tem nos EUA seu principal parceiro de negócios”.
As críticas ao modelo que nos foi induzido ou imposto pelos EUA, quando aqui surgiam, partiam somente daqueles que --como diziam professoralmente na imprensa FHC e os mais altos dirigentes nacionais-- “não têm imaginação, são neobobos que culpam os EUA (e os brasileiros implantadores das medidas neoliberais) por muitas de suas frustrações e ficam com nhenhenhém”.
Didaticamente, explicavam-nos na TV que os EUA tinham as melhores e as mais nobres intenções e ações em relação ao Brasil. Os únicos culpados pelos nossos problemas eram os próprios brasileiros, que estavam tornando este país o mais injusto do mundo. Eram, nomeadamente, os funcionários públicos ('máquina inchada'), os sindicatos e os partidos a eles ligados (que não concordavam, por exemplo, com a 'flexibilização do trabalho'), os aposentados (muitos deles vagabundos, que se aposentaram antes dos 60 anos) e “os vinte anos de ditadura” dos militares.
Tudo aquilo era radicalmente apoiado e pregado intensa e diariamente pela grande mídia, que fazia a cabeça especialmente da classe média. Aliás, essa campanha continua forte até hoje.
Recordei esse cenário para melhor compreendermos o atual “panelaço” em Buenos Aires focalizado com muita simpatia pelas grandes mídias argentina e brasileira.
Hoje, ao iniciar a pesquisa sobre o tema, encontrei um bom texto no Blog “Óleo do Diabo”, de Miguel Rosário. Reproduzo:
BLOGUEIROS DESMASCARAM GOLPISMO ARGENTINO
“Achei muito estranho este novo panelaço em Buenos Aires. Quem acompanha a história recente do país, sabe que, por mais problemas que haja na gestão dos Kirchnner, eles literalmente "salvaram" a pátria, fazendo o país crescer a taxas chinesas e o desemprego retornar a patamares razoáveis.
Além disso, a vitória de Cristina Kirchner, há somente alguns meses, foi esmagadora.
Como não aconteceu nada de muito grave desde então, porque cargas d'água os argentinos iriam fazer "cacerolazo"? Na época de Menen ou De La Rua, explicava-se: a economia estava descendo ladeira abaixo e o desemprego explodindo, mas agora? Tudo bem ser crítico ao governo Kirchner, mas daí partir para a gritaria?
Desconfiei e hoje fui a caça de blogs argentinos. Dito e feito. Os blogueiros políticos estão perplexos com o que houve. A mídia fazia convocação a cada 15 minutos e repetia que era "espontâneo". Tudo para desgastar Cristina, que sofre com uma oposição de direita raivosa sediada nas redações dos grandes jornais e canais de TV.
O impressionante é a pressa, e quase ansiedade, com que a mídia brasileira repercute o que diz a mídia argentina, mostrando que, na América Latina, formou-se uma verdadeira irmandade midiática reacionária, que opera no continente de norte a sul.”
Eu gostei desse texto do “Óleo do Diabo”. Logo postei para ele um comentário:
“Prezado Miguel do Rosário,
Obrigado. Eu começava a pesquisar a razão desse estranho panelaço na Argentina quando deparei com o seu esclarecedor texto. Todos nós, brasileiros e argentinos, sabemos da tragédia para os dois países causada pela triste competição Menen x FHC para ver quem obedecia mais cegamente os ditames de Washington. Menen ganhou por diferença de milésimos. Também, o ministro das relações exteriores argentino apelou e confessou que a Argentina estava em conjunção carnal com os EUA de Clinton. Os EUA usaram e abusaram da Argentina e a chutaram. Ela, arrasada, ganhou somente um ridículo e inócuo diploma de "aliada extra-OTAN" honorária...Contudo, a grande imprensa da AL continua submissa aos interesses dos EUA. Daí, o panelaço.
Maria Tereza, "democraciapolitica.blogspot.com"
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