domingo, 16 de março de 2008

ENTREVISTA COM O MINISTRO DO MRE - POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA

A matéria abaixo transcrita foi publicada hoje no "Blog do Nassif". Achei-a muito boa, esclarecedora e oportuna.

"A LÓGICA DO ITAMARATY"

(Entrevista de Fred Melo Paiva com o Ministro das Relações Exteriores Celso Amorim)

"É curiosa essa mania de enfiar FARCs em tudo, em não se entender o papel da diplomacia, o tecido delicado que costura as relações internacionais.

A bola da vez, agora, são as FARCs, como se o país tivesse alguma responsabilidade a mais – que não a de atuar como grande mediador de conflitos.

A síndrome do Foro de São Paulo virou algo pavloviano, a critica do momento, que pega de pensadores de direita a cronistas do mundano. Os pensadores, menos, porque pensam. Mas os cronistas deitam e rolam em cima de qualquer lenda de Internet.

A entrevista envereda direto pelas lendas da Internet, pelas picuinhas, mas permite, também, bons momentos.

Sobre a afirmação de que o Brasil perdeu oportunidade de se firmar como liderança regional na recente crise Colômbia x Equador.

--Quando ninguém no País está falando mal do governo, o que é muito raro, acha-se um sociólogo não sei aonde para criticar (uma referência ao argentino Juan Gabriel Tokatlian). Não estou dizendo que as críticas sejam desonestas. Agora, pegue, por exemplo, o que disse o (cientista político José Augusto) Guilhon (Albuquerque), segundo o qual o Brasil deu uma escorregadela porque tomou o lado do Equador. O Brasil não tomou lado nenhum. Apenas defendeu uma coisa fundamental para as relações internacionais - base da nossa política desde antes do (Barão do) Rio Branco -, que é o respeito à integridade territorial dos Estados. Não podemos relativizar esse conceito. (...)

Sobre o discurso da Chávez e os supostos arquivos encontrados no computador de Raúl Reyes.

--Como posso especular sobre as motivações do presidente Chávez? Acho que ele tem um desejo autêntico de ajudar na questão dos reféns. Agora, a diplomacia, diferentemente talvez do jornalismo, não tem de ficar investigando. Às vezes, se você vê uma nesgazinha de esperança, é nela que tem de apostar, ignorando tudo o mais.

Como a diplomacia vai lidar com essas informações supostamente comprometedoras?

--A declaração do Grupo do Rio diz que a Colômbia entregará (o material apreendido) ao Equador, para que se faça uma investigação - isso está em um dos parágrafos da declaração. Esta investigação deve envolver a oposição e a Justiça equatoriana. Como eu disse à presidente Bachelet, brincando: “Vale o que está escrito” (a expressão vinha grafada nas pules do jogo do bicho, como garantia do prêmio).

Por que o Brasil não se posiciona de mais maneira mais firme com relação às Farc?

--Nossa posição é firme na condenação aos atos de violência que elas têm praticado ultimamente. Por que não classificamos as Farc como movimento terrorista? Porque o Brasil não tem a prática de fazer classificações desse tipo, a não ser que tenha antes sido feita pela ONU. A Al-Qaeda, por exemplo, foi declarada pela ONU um movimento terrorista - e por isso a legislação brasileira a considera dessa mesma forma. Ademais, as organizações evoluem para melhor ou para pior. Quando morei na Inglaterra, há 40 anos, ninguém falava com o IRA (Exército Republicano Irlandês). Depois passou-se a dialogar com o grupo, que mudou de comportamento. Hoje toma parte nas decisões do governo. Com o Khmer Vermelho (guerrilha comunista do Camboja) aconteceu o contrário. Não estou comparando as Farc com um nem com outro. Apenas dizendo que, em algum momento, talvez precisaremos conversar (com as Farc). De qualquer maneira, temos absoluta clareza em não manter nenhum diálogo político com eles, sem que antes sejam libertados todos os reféns, de forma unilateral e sem que se imponha nenhuma condição para isso.

O que tem sido feito para colaborar com a libertação dos reféns?

--Se tivermos de participar de algum diálogo humanitário, só o faremos em concordância com o governo colombiano, que é democraticamente eleito. No entanto, o que aconteceu recentemente - e cujo fechamento total se dará amanhã na reunião da OEA -, serviu para demonstrar que as Farc são, sob certos aspectos, uma questão não apenas colombiana mas regional. O governo da Colômbia quer tratar o tema regionalmente apenas quando fala de cooperação contra o terrorismo. Isso é muito difícil. O presidente Uribe tem de ter a capacidade de ouvir sugestões, inclusive sobre a parte humanitária.

Há algum constrangimento por parte da diplomacia brasileira em função da afinidade ideológica do PT com as Farc?

--É injusto e exagerado falar de identidade ideológica (entre Farc e PT). O presidente Lula perdeu três eleições e nunca saiu da via democrática. Sua política é uma política de Estado e isso é claríssimo, de forma que essa questão não nos constrange. A primeira vez que se tratou do tema das Farc neste governo foi numa conversa envolvendo o governo da Colômbia, um representante da ONU naquele país e o (então secretário-geral da ONU) Kofi Annan. Tentava-se, ali, o começo de um diálogo humanitário entre a ONU e as Farc. A idéia era que isso pudesse ocorrer em território brasileiro. Se houvesse algum constrangimento, o presidente Uribe seria o primeiro a ter vetado a iniciativa. Aliás, o próprio Uribe já pediu ajuda ao PT para lidar com o movimento sindical de seu país.

Sobre o que representa a visita da secretária de Estado Condoleezza Rice ao Brasil.

--A continuidade de um processo de diálogo muito intenso que tem havido entre Brasil e Estados Unidos. Houve duas visitas do presidente Lula aos EUA, duas visitas do presidente Bush ao Brasil. Tenho conversado com a secretária de Estado com uma freqüência muito grande. É um diálogo aberto, sobre temas variados. Houve uma matéria de jornal dizendo que ela viria para pressionar o Brasil com relação às Farc. Isso não tem cabimento nenhum porque não teria adiantado nada: sobre isso, nossa posição e a maneira como lidamos com os problemas são muito claras. Trocamos idéias sobre a América Latina, sim, mas também sobre o Oriente Médio, onde eu e ela estivemos recentemente. Falamos também sobre biocombustíveis.

Sobre Condoleezza Rice ter justificado “ações militares preventivas” em zonas fronteiriças para combater o tráfico e a guerrilha.

--Os países devem cooperar ao máximo para combater ações de grupos ilegais. Mas o Brasil não está de acordo com uma doutrina de ataque preventivo.

O que mudou em nossa política externa de FHC para cá?

--Os princípios básicos são os mesmos. Mudaram as ênfases e as intensidades com que certos temas são tratados. Quando eu era embaixador na ONU, o Brasil sempre teve proximidade com os africanos. Não se pode dizer, portanto, que a boa relação com a África é uma invenção do governo atual. Agora, vá comparar a intensidade dessa relação antes e depois. Os países árabes eram antes uma coisa distante. Agora somos convidados para a Conferência de Annapolis sobre Oriente Médio. Não me consta que no passado isso ocorresse. No segundo dia do governo Lula, criou-se o foro Índia-Brasil-África do Sul (Ibas). Não é coincidência que, à exceção daqueles diretamente envolvidos na problemática da região, os únicos três países convidados logo de início para Annapolis tenham sido justamente Índia, Brasil e África do Sul. Isso tem um impacto em toda a política internacional. Com exceção de um único ano, fomos chamados a participar de todas as reuniões do G-8. Essas mudanças são tão grandes que talvez se possa dizer que as únicas coisas que permaneceram iguais (ao governo FHC) foram os princípios.

O que o senhor considera uma marca da política internacional sob a gestão Lula?

--Entre outros pontos, a multipolaridade. O Brasil tem trabalhado ativamente por ela. O grande diferencial é que deixamos de lado a velha dicotomia que habitava a cabeça das pessoas: melhoramos nossas articulações com a África, China, Índia - mas sem hostilizar os Estados Unidos e a União Européia, que tem tido conosco um diálogo muito privilegiado. Note que não foi o Brasil que propôs à UE a criação de uma parceria estratégica. A proposta partiu deles. Por outro lado, não preciso olhar para EUA e Europa para enxergar o Oriente Médio e a África. Claro que isso não aconteceu por causa deste governo. Não haveria como pensar no Ibas sem que tivéssemos uma democracia consolidada e uma economia estabilizada."

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