domingo, 27 de abril de 2008

LULA: TEXTO COMPLETO DA ENTREVISTA AOS DIÁRIOS ASSOCIADOS

O Correio Braziliense de hoje, domingo (27) publicou a entrevista exclusiva do Presidente Lula aos Diários Associados, concedida na última quinta-feira (24) no terceiro andar do Palácio do Planalto.

Segue o texto do Correio Braziliense, em matéria de Josemar Gimenez, Alon Feuerwerker, Daniel Pereira, Baptista Chagas de Almeida e Sérgio Miguel Buarque, do Correio Braziliense, do Estado de Minas e do Diário de Pernambuco:

ENTREVISTA - LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA

Ainda que a base se divida em 2010, presidente diz que Planalto trabalhará por um único nome.

O governo terá um único candidato à Presidência da República em 2010, mesmo que os partidos aliados apresentem mais de um concorrente na disputa. Quem avisa é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Em entrevista exclusiva aos Diários Associados, na última quinta-feira, no terceiro andar do Palácio do Planalto, Lula não chegou a dizer o nome do escolhido, mas deixou claro que trabalhará por ele. “Obviamente, se não for possível construir uma candidatura única da base, pode ficar certo de que o governo terá candidato”, declarou o presidente. “Penso em fazer o sucessor à Presidência da República. Trabalho para isso.”

Acompanhado de Franklin Martins, ministro de Comunicação Social, Lula negou que já tenha escalado a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff, para enfrentar a oposição, ao alegar que só a “fantástica” capacidade gerencial da auxiliar não basta para lhe garantir o posto.

Afirmou ainda que os competidores governistas terão que sair a campo logo depois das eleições municipais, para não deixar os governadores tucanos José Serra (São Paulo) e Aécio Neves (Minas Gerais) “sozinhos na praia”.

Em tom acima do habitual, o presidente garantiu que não há possibilidade de tentar um terceiro mandato consecutivo. “Isso é uma coisa obscena para a sustentabilidade da democracia no Brasil.”

Bem disposto, apesar de reclamar do cansaço físico decorrente da sessão diária de exercícios, de pouco mais de uma hora de duração, Lula tachou de “pequena” a discussão sobre gastos com cartões corporativos. Informou que instituirá o valor de uma diária para viagens, em resposta à crise. Prometeu punir o responsável pelo vazamento de dados sigilosos do governo anterior. E rechaçou a acusação segundo a qual o governo forjou um dossiê para atingir o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e a ex-primeira dama Ruth Cardoso.

“Achar que este governo iria fazer um dossiê contra a dona Ruth é não ter a dimensão de que, se eu quisesse fazer dossiê, teria feito em 2005, quando fui triturado por adversários que vocês conhecem bem. Eu posso ter todos os defeitos, mas se tem uma coisa que aprendi na minha vida é ter relação política leal.”

Lula mostrou-se confiante em relação aos desafios na área econômica. Voltou a considerar a pressão inflacionária sobre os alimentos, por exemplo, “um bom desafio” para o Brasil, que teria terra, tecnologia e condições climáticas favoráveis para plantar, ao contrário dos Estados Unidos e da Europa.

Em recado ao Banco Central, declarou que o Brasil não precisa ter medo da inflação, porque os investimentos em curso serão capazes de sustentar o crescimento da demanda. “Nós não queremos truncar o crescimento. Daí, a minha preocupação com os juros”.

Em cerca de uma hora e vinte minutos de entrevista, o presidente esbanjou bom humor. Como de costume, puxou conversa falando de futebol e lamentando o desempenho do Corinthians, seu time de coração. Antes de enfrentar a bateria de perguntas, ainda encontrou tempo para brincar com o hábito de fumar cigarrilhas. “Está na minha mesa, para eu sancionar, um projeto que proíbe fumar em lugares fechados. Que ironia do destino.”

Nas próximas páginas, a íntegra da entrevista.

Que medidas o governo vai adotar para evitar que a comida encareça e enfraqueça o apoio político que o senhor tem entre a população mais pobre?

É injustiça achar que o reconhecimento da população mais pobre se deve só à questão da comida. A comida é um fator preponderante. Agora, é importante ter noção do que foi feito para os setores excluídos da sociedade. Do Bolsa Família ao Programa Luz para Todos, do Pronaf ao crédito consignado, do ProJovem às escolas técnicas. O que permite que você tenha uma densidade de política social como poucas vezes ou nenhuma vez o Brasil teve.

Eu fui um dirigente sindical razoavelmente importante no Brasil, fiz as greves mais importantes, era muito difícil conseguir 1% de aumento real de salário. Hoje, 90% dos sindicatos estão fazendo acordos ganhando aumento de salário.

Tem um conjunto de fatores que permite que a sociedade viva um pouco melhor. E um deles é a comida. Estamos vivendo um momento sui generis no mundo. Milhões de seres humanos começaram a comer nos últimos 10 anos. E a agricultura não cresceu proporcionalmente à demanda. Por isso, eu disse que é um bom desafio. Porque ter mais gente comendo significa que a gente precisa produzir mais. Temos terra para produzir mais, temos tecnologia para produzir mais, temos sol para produzir mais, temos água para produzir mais. Produzir mais alimentos para manter o preço do alimento estável.

Na semana passada, eu dizia para o ministro Guido Mantega que não é mais possível discutir inflação sem colocar na mesa o ministro da Agricultura e o ministro do Desenvolvimento Agrário. Porque tem que ter um jogo combinado. Precisamos aumentar nossa produção. Esse é um desafio que não me preocupa. É um desafio que me alenta a provocar os produtores brasileiros a produzirem muito mais.

Como o governo vai administrar dois projetos que parecem conflitantes, biocombustível e alimento? E como evitar que a cana-de-açúcar para o etanol reproduza o tradicional modelo concentrador de renda?

Primeiro, é inconcebível alguém dizer que a questão do biocombustível tem alguma coisa a ver com o preço dos alimentos, porque o mundo não produz biocombustível e tem 800 milhões de pessoas que vão dormir sem comer. Os que criticam o biocombustível nunca criticaram o preço do petróleo. O mundo desenvolvido importa petróleo sem tarifa e coloca uma tarifa absurda para importar o etanol do Brasil.

No fundo, o Brasil está sendo vítima na medida em que virou artista principal do jogo. Não somos mais coadjuvantes. Somos o maior exportador de café, de suco de laranja, de soja, de carne. O que precisamos, e na política do biodiesel está correto, é o chamado selo social. O produtor que contratar a produção do biodiesel da agricultura familiar tem isenção de impostos, exatamente para a gente não repetir o erro da cana.

Temos dito claramente que, se quisermos ter sucesso (na Rodada de Doha de liberalização do comércio), é preciso que os países ricos flexibilizem nos preços agrícolas para que os produtos dos países mais pobres entrem no mercado rico, senão não há estímulo para os países plantarem.

Então, parem de hipocrisia e comecem a comprar os combustíveis que estamos vendendo. Ou façam parceria com terceiros países. A Europa poderia fazer convênio, como nós fizemos em Gana. Vamos produzir em Gana para vender para a Suécia. Quero dizer uma coisa de coração: se um dia eu chegar à conclusão de que, para encher o tanque de um carro, meu tanque (apontando para a barriga) terá de ficar vazio, vou encher meu tanque primeiro para depois encher o tanque do carro. Não podemos é aceitar a discussão que os países ricos querem nos impor.

Desde pequeno eu ouvia dizer que o Brasil seria o celeiro do mundo. Pois bem, a oportunidade se apresenta agora. A Europa não tem mais condição de aumentar a produção agrícola, são poucos os países que têm terra para aumentar. Quem é que tem? O Brasil, a África e a América Latina.

O senhor tem dito que o biocombustível e a cana-de-açúcar não pressionam a produção de alimento porque o Brasil tem muita terra, especialmente pastos degradados que poderiam ser utilizados. Se está sobrando terra para plantar cana, por que está faltando para a reforma agrária?

Não está faltando terra para a reforma agrária. No governo passado, em oito anos, eles distribuíram 22 milhões de hectares de terra. Nós, em cinco anos, distribuímos 35 milhões de hectares de terra.

Qual é a divergência que tenho com o movimento dos sem-terra? É que acho que o problema não é assentar mais gente. O problema é fazer as pessoas que já estão na terra se tornarem mais produtivas. O que não pode é ficar colocando gente num canto, e eles continuarem tão miseráveis quanto estavam ontem. Precisamos aperfeiçoar a produtividade, a assistência técnica, o equilíbrio dos preços para quem já tem terra. Desse drama eu não sofro.

O dado concreto é que estamos vivendo um bom desafio, e o Brasil não pode ter medo do bom desafio. O ruim seria se o mundo estivesse precisando de alimento e o Brasil não tivesse terra, tecnologia e conhecimento.

Essa escalada no preço dos alimentos deu razão ao Banco Central, que aumentou em 0,5 ponto percentual a taxa básica de juros?

Olha, não me peça para discutir o Banco Central. Você pode discordar da visão que o Banco Central está tendo de que a inflação daqui a um ano será de 6% ou 7%, ou você pode concordar. Então, cabe ao governo, em vez de ficar choramingando, tomar atitudes para evitar que os preços da comida subam. Naquilo que são preços que dependem do governo as coisas estão mais ou menos controladas. Então, eu acho que não há necessidade de a gente ter medo da inflação. A inflação tem que ser controlada porque durante 27 anos da minha vida vivi de salário como trabalhador e sei que a inflação é uma desgraça na vida de um operário. Então, precisamos aumentar a produção.

Uma economia saudável é aquela em que você tem um crescimento da demanda e um crescimento da oferta andando mais ou menos juntos. Se a oferta cresce mais, você expande suas exportações. À medida que a demanda cresce um pouco mais e a oferta não cresce, temos um problema de aumento de preço.

Não está acontecendo isso no Brasil. Não está acontecendo. Porque tem muitos investimentos. Esses investimentos num primeiro momento são consumo, porque você tem que comprar as coisas para construir uma fábrica, mas num segundo momento se tornam oferta. E é com essa idéia que nós trabalhamos para 2009. Os investimentos já estão feitos, já estão acontecendo. Nós passamos 26 anos sem fazer uma fábrica de cimento no Brasil. De repente, fomos obrigados a fazer 10 fábricas de cimento, porque a construção civil foi destravada. E nós não queremos truncar o crescimento. Daí a minha preocupação com o aumento dos juros.

A ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil, tem a liderança política e a capacidade necessárias para enfrentar os desafios colocados ao país?

Por que você pergunta da Dilma e não do Franklin (Martins, ministro da Comunicação Social)? Eu tenho tido todo o cuidado e tenho consciência de que não é o momento de o presidente da República estar em campanha. Tenho dois anos e oito meses de mandato ainda, tem muita coisa para se fazer neste país, e eu não posso perder tempo fazendo campanha.

Tomei uma decisão de que nas eleições municipais, onde a base estiver com mais de um candidato, não pense que eu vou lá porque eu não vou. Agora, também não pensem… Outro dia não sei quem foi que achou absurdo eu dizer que queria fazer meu sucessor. Houve alguém que ficou estarrecido. Ele deveria ficar estarrecido se eu não quisesse fazer. Penso em fazer o sucessor à Presidência da República. Trabalho para isso. Agora, eu tenho uma base muito heterogênea. Com que o presidente precisa contar neste momento? Com a hipótese de que a gente consiga montar uma chapa única da base aliada.

Como fazer isso?

Nós temos candidato a presidente e a vice, 27 governadores e 54 senadores (nas eleições em 2010). Portanto, temos cargos para contemplar essa base heterogênea. O PSB, por exemplo, é um aliado histórico e tem candidato à Presidência, o deputado Ciro Gomes, um candidato forte porque já foi candidato duas vezes, é uma pessoa conhecida, basta ver nas pesquisas.

Mas também é bem possível que outros partidos queiram lançar candidato. E vocês jamais me verão reclamar de um partido querer lançar candidato. Se o PCdoB quiser ter candidato, se o PDT quiser ter candidato, eu acho normal, porque é o momento de o partido colocar a cara na televisão, de dizer qual é o seu programa, a sua proposta. Então, vocês não me verão nervoso porque os partidos terão candidato próprio.

Obviamente, se não for possível construir uma candidatura única da base, pode ficar certo de que o governo terá candidato.

Por que o senhor escolheu a ministra Dilma?

Eu não estou dizendo que será a Dilma. Não sei quem está dizendo que é a Dilma. É muito difícil a gente tentar lançar alguém candidato sem que tenha uma discussão com o partido ou com os aliados. Se você perguntar das qualidades da Dilma, vou dizer para você uma coisa: existem raríssimas pessoas no Brasil com a capacidade gerencial da companheira Dilma Rousseff. Rarísssimas. A Dilma é de uma capacidade de gerenciamento impecável. E, sobretudo, é aquilo que a gente gosta, ‘Caxias’. Então, eu acho uma figura extraordinária.

Agora, entre ser uma figura extraordinária para gerenciar e ser candidata à Presidência é uma outra conversa, porque aí entra um ingrediente chamado política, que exige outras credenciais. Eu não estou discutindo isso agora. No momento certo, provocarei a discussão.

Quando será o momento?

Será depois das eleições de 2008. Terminada a eleição para as prefeituras, a partir do ano que vem todo mundo tem que saber claramente que vamos começar a campanha de 2010, sem que o presidente participe diretamente, porque tenho muito coisa para fazer, mas os partidos precisarão começar a sair a campo, porque se não fica uma situação desigual. O PSDB tem dois candidatos já postos, o (José) Serra (governador de São Paulo) e o Aécio (Neves, governador de Minas Gerais). Não se sabe se o (Geraldo) Alckmin quer ser ou não. Ou seja, a oposição não pode ficar nadando na praia sozinha. É preciso colocar mais gente nessa praia, e acho que os partidos vão colocar.

O senhor é a favor da aliança do PT com o PSDB em Belo Horizonte? (depois da entrevista, a aliança foi vetada pelo Diretório Nacional do PT)

Cada partido, na sua cidade e no seu estado, tem que determinar a política que ele entende que seja mais conveniente. O que estou entendendo? Que é conveniente para o Aécio fazer a aliança com o Fernando Pimentel (prefeito de Belo Horizonte) e é conveniente para o Pimentel fazer a aliança com o Aécio. Como o Aécio tem o controle do PSDB e o Pimentel mostrou ter o controle do PT, os dois fizeram aliança. Eu acho normal para disputar a prefeitura. A gente não pode também ficar querendo que Roraima e Pernambuco se envolvam no acordo que Minas Gerais fez.

Os ministros Patrus Ananias e Luiz Dulci não ficaram muito felizes com a aliança.

É normal. Houve dezenas de reuniões, eles não participaram e a gente paga o preço. O Pimentel está há muito tempo na prefeitura, foi secretário do Patrus, foi secretário do Célio (de Castro), foi vice-prefeito, é prefeito duas vezes. Ele só pode ter o controle do partido lá. E também é muito competente. Se tem uma coisa que não falta ao Pimentel é competência.

Essa aliança não tem um significado maior, uma simbologia nacional?

Eu não vejo assim. Obviamente que quem fez pode pensar que tem.

A aliança não pode atrair o PSB em nível nacional?

Não acredito. Ela se deu em Belo Horizonte, mas não se deu em Contagem, em Ipatinga, em Governador Valadares. Ou seja, é uma coisa muito localizada.

Uma das versões sobre a aliança é que o PT está fortalecendo o Aécio porque acha que ele não será o candidato à Presidência do PSDB. Mas se ele for o candidato do PSDB, como é que fica?

Primeiro, não cabe ao PT fortalecer o Aécio. Quem tem que fortalecer o Aécio, em primeiro lugar, é o próprio Aécio e, em segundo lugar, o PSDB.

Mas o senhor disse que a aliança fortalece o Aécio e o Pimentel.

Não sei. Acho que essa aliança não pode ter vinculação com 2010. Todo mundo sabe que o Aécio é um político hábil, inteligente. O Aécio e o Pimentel gostam de viver essa relação muito harmônica. Isso é um problema de Minas Gerais.

O jogo vai começar para 2010 a partir de agora. Obviamente que o Aécio antes de qualquer coisa tem que enfrentar os obstáculos internos, o Serra tem que enfrentar os obstáculos internos. Depois é que eles vão sair na disputa pública para ver quem é quem. Acho que nós precisamos nos preparar. Quem quer que seja o candidato (da oposição), o governo vai ter candidato.

O governador Aécio Neves seria um bom nome da coalizão governista se mudasse para o PMDB?

É muito difícil para o presidente da República discutir em tese. É preciso primeiro saber se o PMDB quer. Segundo, saber qual é o tempo em que ele faria isso, porque isso aos olhos do povo não é uma coisa simples. Eu estou torcendo pelo Garantido (um dos competidores no Festival Folclórico de Parintins-AM) e daqui a pouco o povo me vê no Caprichoso (adversário do Garantido). Não é assim, não é uma coisa simples.

Obviamente que o governador de Minas Gerais tem condições de pleitear ser candidato a presidente, como tem o governador de São Paulo, do Rio de Janeiro e do Paraná. Agora, primeiro tem o confronto interno, que não é uma coisa fácil. E certamente o Aécio não vai correr do jogo antes de o jogo ser jogado. Ele vai ter que disputar. Se ele perde e depois tenta sair, aí realmente é um tiro pela culatra.

O senhor citou Roraima. O senhor sempre diz que conhece o Brasil, e não apenas de ouvir falar. O senhor, ao longo de sua vida política, já esteve nos quatro cantos do país. Por que o senhor não foi até hoje, em mais de cinco anos de mandato, até Roraima para conhecer a situação pessoalmente e conversar diretamente com a população sobre o conflito fundiário que ocorre naquele estado?

Primeiro, eu já fui muitas vezes a Roraima. Não fui como presidente da República, porque tem um conflito estabelecido. Um grupo de políticos tratou de fazer contra o governo federal uma guerra, quando o que estávamos querendo fazer era a demarcação (da reserva indígena Raposa/Serra do Sol) tal como preconizado no governo passado.

O ministro Márcio Thomaz Bastos (então na Justiça) trabalhou, ouviu quem deveria ouvir, foi lá dezenas de vezes, fez uma demarcação, estabeleceu-se o conflito, e é só você ver a publicidade feita pelos adversários lá que você vai perceber que está estabelecida uma guerra com o governo federal. E por que eu iria lá para aumentar esse conflito?

O senhor não poderia ser um mediador?

Temos tentando mediar daqui. Tudo que fizemos até agora foi acordado na minha mesa. Tudo. Acontece que você faz um acordo aqui e as coisas não acontecem lá.

Agora, eu não quero mais discutir esse assunto porque está no Supremo Tribunal Federal. Eu só posso lhe garantir uma coisa: o Márcio Thomaz Bastos trabalhou nisso com carinho, tivemos deputados e senadores que foram lá, construiu-se uma proposta que era razoável, estabeleceu-se um acordo para distribuir as terras que estão nas mãos do Incra para o estado de Roraima. Tudo isso foi feito.

Ainda assim continua uma guerra. É só você ver a quantidade de outdoors naquela cidade contra o governo federal, enquanto a gente queria encontrar uma solução para o bem de Roraima. Ora, não fui eu que levei os índios para lá. Eles estavam lá antes de chegar o governador, antes de eu ser presidente da República e, eu diria, antes de o Brasil ser descoberto. O que estamos fazendo é dando para eles aquilo que entendemos que é de direito deles. A Suprema Corte vai tomar a decisão. Qualquer que seja a decisão, para mim está resolvido o problema.

Como o senhor recebeu a fala do comandante militar da Amazônia, general Augusto Heleno, a respeito desse assunto?

Ele disse publicamente que falou em caráter pessoal. À medida que o governo mostrou sua insatisfação, ele disse que não vai falar mais. Para mim, está resolvido o problema. Acho normal que um militar que está na área tenha uma visão que necessariamente não precisa ser a minha. Mas à medida que o governo tem uma decisão, aquela é a decisão do país. Agora, quando vai para a suprema corte, o governo também se subordina à decisão da Suprema Corte.

O senhor aceitaria prorrogar o mandato em mais um ano para viabilizar o fim da reeleição e o mandato presidencial de cinco anos?

Não existe possibilidade. O que eu acho é que o Congresso e os partidos deveriam priorizar a reforma política. Dentro da reforma política, poderiam aumentar o mandato do presidente em um ano e acabar com a reeleição a partir de 2014. O dado concreto é que a reforma política se faz extremamente necessária e eu não sei por que os partidos não querem fazê-la. Às vezes, sou cobrado e fico pensando se é o presidente que tem que fazer uma proposta. Não é o presidente.

Mas o senhor está disposto a apresentar uma proposta?

Eu não quero fazer. Não é papel do Executivo fazer a proposta de reforma política. Aliás, nós tentamos fazer. Tem uma proposta enviada pelo companheiro Márcio Thomaz Bastos ao Congresso que foi para uma comissão, foi discutida e parou. Se você perguntar para mim qual é a reforma mais importante a ser feita no Brasil, eu direi a reforma política. E tenho provocado os partidos para que discutam, que coloquem uma proposta, não façam nada para a próxima eleição. Façam para 2014, para quando quiserem, mas façam. Vamos dar mais estabilidade institucional ao país, valorizar os partidos.

Por que os partidos não votam a reforma?

Porque é sempre muito difícil as pessoas que estão exercendo o cargo quererem mudar as regras do jogo. Se o governo puxa uma proposta de reforma política e os partidos não querem, o governo já sai derrotado no berço. Eu tenho provocado. Já pensei até em convocar os ex-presidentes para que fizessem a proposta política. A impressão que eu tenho é que as pessoas não querem. É uma coisa bonita de falar, fácil de falar, mas na hora de votar ninguém quer. As pessoas acham que as eleições têm que ser do jeito que está.

Quando há interesse, é para propor o terceiro mandato.

O terceiro mandato não está ligado à reforma política. Propor o terceiro mandato é tão pernicioso quanto foi proporem o segundo.

Essa frase é perigosa, presidente, porque o segundo mandato aconteceu.

Aconteceu. Na minha opinião, não foi nenhuma sumidade para o Brasil porque a gente poderia ter mantido o mandato de cinco anos sem reeleição. Por que aconteceu o segundo? Por causa da vaidade de quem está no poder.

Eu acho que é impensável, se você quiser consolidar a democracia no Brasil, pensar em terceiro mandato. Porque hoje você pensa em terceiro mandato, amanhã pensa em quarto mandato, daqui a pouco está pensando em quinto mandato. E isso é uma coisa obscena para a sustentabilidade da democracia no Brasil. As pessoas que discutem terceiro mandato não têm coisa mais séria para discutir. E a gente não pode dar crédito a tudo que a oposição fala. A oposição que está com medo do terceiro mandato é a oposição que achava que meu mandato tinha acabado em 2005.

Há uma CPI mista no Congresso sobre cartões corporativos. A Polícia Federal está investigando uma possível manipulação irregular de informações sigilosas das contas do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o vazamento desses dados, que estavam sob a guarda da Casa Civil. O senhor acha que esses dados estão seguros aqui no Palácio? O senhor falou tanto da capacidade gerencial da ministra Dilma… Não houve um descontrole nesse assunto?

A maior prova de que não estão seguros é que vazaram. Por que vocês não pegam o caso de que todo vazamento que houve dos cartões corporativos é por causa da divulgação feita pela Controladoria-Geral da União, no Portal da Transparência?

Mas ali não é vazamento.

Mas está tudo lá. Qualquer cidadão pode entrar no portal e pegar as informações. Obviamente que, se eu tirasse a minha camisa aqui e chamasse um de vocês escondido e falasse que essa camisa eu achei no túmulo do (Che) Guevara, a manchete seria: “Lula entrega ao Correio Braziliense a camisa com a qual foi enterrado Guevara”. Até alguém provar que era mentira… Agora, achar que este governo iria fazer um dossiê contra a dona Ruth (Cardoso, ex-primeira-dama), contra o Fernando Henrique Cardoso, é não ter dimensão de que, se eu quisesse fazer dossiê, teria feito em 2005, quando fui triturado por adversários que vocês conhecem. E que certamente, se investigados, teriam muitas coisas… Eu não fiz porque fui vítima disso a vida inteira.

O que estamos fazendo é um banco de dados, para que as pessoas tenham as informações adequadas. E quando eu deixar a Presidência não existirá mais nada meu que não possa ser divulgado.

Agora, se alguém consegue pegar um documento e vender como dossiê, ou entrega para um senador e para um deputado, eu não posso fazer outra (coisa) a não ser apurar, para saber o que aconteceu.

Vamos continuar a fazer banco de dados até 31 de dezembro de 2010. Eu fico triste porque muitas vezes vejo o debate nacional se dar em cima de coisas menores, e não das coisas importantes que a gente deveria discutir. Eu posso ter todos os defeitos, mas se tem uma coisa que eu aprendi na minha vida é ter uma relação política leal. Eu vivi esse preconceito, essa perseguição, no movimento sindical. Minha vida foi futucada nos bancos quando sofri intervenção, e eu nunca mostrei um minuto de raiva ou de vingança. Se eu fosse fazer um dossiê, não seria da dona Ruth.

E se a Polícia Federal chegar à conclusão de que houve manipulação indevida de informações, violando normas vigentes sobre dados sigilosos?

Se se provar que alguém manipulou equivocadamente, esse alguém terá que ser punido. Essa é a prática. A única coisa com que fico triste é alguém tentar passar a idéia de que o governo iria fazer um dossiê contra a dona Ruth. Realmente, não me cabe na cabeça.

O senhor concorda com o ministro da Justiça, Tarso Genro, para quem o governo tem o direito de recolher informações de gestões anteriores e usá-las para reagir a crises políticas?

Mas essas informações estão aí. Se eu quiser pegar o que fez um prefeito há 15 anos, é só ir ao Ministério do Planejamento, está lá o processo. O Tarso não disse que é certo. O Tarso disse que não é um delito. Certamente, o Correio Braziliense tem informações cotidianas dos seus concorrentes. Ou não tem? Ou a Pirelli não tem da Michelin? Ou a Volks não tem da Fiat? Agora, imaginar que você vai utilizar isso para fazer alguma coisa… Agora, quando nós instituímos a CPI… E é importante que isso não se perca de vista, porque de vez em quando a gente perde o momento histórico.

Nós fizemos o primeiro comício das Diretas Já em novembro de 1983 no Pacaembu, quando o Fernando Henrique foi lá anunciar a morte do Teotônio Vilela, e para a opinião pública brasileira o único ato que houve foi o de 25 de janeiro de 1984. Mas o primeiro ato, com a presença até do Fernando Henrique, foi nosso.

O que não quero é que se perca de vista que nós pedimos uma CPI e, como nós pedimos uma CPI para até 10 anos atrás, temos que ter o banco de dados para oferecer para a CPI.

Esse debate sobre cartões corporativos é hipócrita?

Não diria que é hipócrita, diria que é pequeno. Eu era presidente do sindicato quando acabei com nota fiscal no sindicato, porque eu via a briga mesquinha do conselho fiscal para saber se o cara parou no posto ou no motel. Em São Paulo, se você pegar a Via Anhangüera, verá dois ou três restaurantes que são motéis também. Até você provar que tinha sido só almoço era uma guerra. Então, resolvi instituir a diária. Fiz uma média nacional. Se você quiser dormir na sarjeta, dorme. Não precisa prestar contas. Só assina o recibo de que recebeu a diária.

Confesso a vocês que neste país há uma certa hipocrisia. Um ministro de Estado, se for à França, come do bom e do melhor e não põe a mão no bolso. No Brasil, um ministro não pode pagar um café para um convidado. Imagina o ministro da Justiça do Brasil ir jantar com o ministro da Justiça da Colômbia e na hora de pedir a conta falar o seguinte: vamos rachar. É uma hipocrisia.

Vou esperar a CPI terminar e instituir uma diária. Ou verba de representação. Espero que a CPI proponha isso. Se o cidadão pegar a diária e quiser dormir num meia estrela para economizar, o problema é dele. Mas pelo menos você fica tranqüilo e não fica vulnerável a ver manchete de jornal dizendo que o cidadão gastou oito reais com tapioca. Prefiro correr o risco de fazer a coisa séria.

Os gastos de ex-presidentes têm que ser mantidos em sigilo?

Não é todo gasto que é mantido em sigilo, é aquilo que o Gabinete de Segurança Institucional entende que é de segurança da instituição Presidência da República. Só vale para quando você for presidente. Quando eu deixar a Presidência, no dia primeiro de janeiro de 2011, os meus dados serão dados públicos. Não tem mais segurança, não tem mais que alugar carro em meu nome, não tem importância as pessoas saberem em que açougue vai comprar carne. Eu conheço presidente que não toma água que a gente oferece, que não toma café que a gente oferece, que não come a mesma comida que a gente come. Eu como até coisa que me dão no palanque. Se tiver alguma desgraça, eu sei que vou me ferrar. A segurança quando vê toma da minha mão. Eu tenho que pegar sem eles verem.

O ideal para mim ao terminar o mandato é ter clareza de que o Brasil mudou de patamar. Obviamente, eu não carrego a ilusão de que a gente vai transformar o Brasil na grande nação com que todos nós sonhamos em oito anos, 15 anos. É um processo que precisa ter continuidade. Daí a necessidade de o próximo governante ter uma concepção seqüencial, de dar cumprimento às coisas que estamos fazendo.

As discussões que não avançam no Congresso, como a reforma política, têm uma mesma razão embrionária, que é a disputa entre dois núcleos de poder de São Paulo, o PT e o PSDB. Depois de 16 anos, está na hora de mudar esse eixo de poder?

Sempre achei que PT e PSDB pudessem ter muitas convergências e que as coisas não fossem ser radicalizadas da forma que ficaram radicalizadas. Quando o PSDB ganhou as eleições, houve uma tentativa de aproximação com a esquerda, havia até quem dissesse que o Fernando Henrique tinha cooptado o José Genoino, mas isso não aconteceu. Só para você ter uma idéia, eu fui chamado para conversar com o Fernando Henrique (só) em 1998, depois das eleições. Não havia diálogo. E agora também não há, porque o PSDB virou o nosso principal adversário.

É importante lembrar que, em 1994 e 1998, o PT nas duas eleições disputou com o Mário Covas (o governo de São Paulo) e depois teve a responsabilidade de contribuir para a eleição do Covas no segundo turno. Há dentro do PSDB e dentro do PT um espectro de conversações muito amplo. Radicalizou muito nos últimos três anos com algumas pessoas, não todas. A minha convivência com os governadores do PSDB é a melhor possível. Onde está o problema? No Senado.

Por que o governo, em vez de mandar derrubar a regulamentação da Emenda da Saúde, aprovada com o voto do PSDB, não negocia com a Câmara?

O governo não vai mover um dedo. Se eles quiserem negociar na Câmara, que façam. O dado concreto é que não pode a mesma Casa que derrotou a CPMF aprovar a regulamentação da Emenda 29. É um contra-senso. Para que fazem isso? Para me colocar em xeque? Se eu vou vetar? Não tenham dúvida. Não tenham dúvida de que eu não vacilarei um milímetro para fazer a coisa correta que tem de ser feita em nome deste país. A não ser que eu fosse um total irresponsável e deixasse passar. Aí, quando o outro tomar posse em 2011, o país está quebrado. Eu não vou fazer isso.

Isso vale para o fator previdenciário também?

Isso vale para tudo que for aprovado e não tenha afinidade com o potencial de pagamento do país. Como é que eu posso chegar em casa e prometer para meu filho uma coisa que eu não posso dar? Fazer proselitismo em época de campanha? É realmente triste isso.

O senhor tem assistido ao noticiário da TV Brasil?

Eu não tenho conseguido ver televisão. Quando eu chego em casa, as 11h da noite, eu mal tomo meu banho, tomo uma sopa e vou dormir.

Agora, mesmo sem ver, vou dizer uma coisa: vamos construir uma grande TV pública. Acho que é necessário. Não queremos fazer competição de publicidade com a imprensa privada, mas queremos fazer competição na qualidade da informação, da programação.

Alguns diziam que isso é TV do Lula, mas seria insano eu fazer uma coisa quando estou saindo do governo. Estou fazendo porque acho que o país precisa, porque a gente pode fazer melhor do que a melhor que nós temos no Brasil, que é a TV Cultura. Pode fazer melhor. E passar informações corretas, com jornalistas sérios, sempre mostrando a moeda com as suas duas faces, e nunca com uma face só. Eu sei que não é fácil. Para você lançar um canal de televisão e fazer ele ser visto, leva um tempo.

O senhor ainda pensa que a imprensa burguesa persegue o seu governo?

Houve um momento em que a imprensa brasileira criou a idéia do consenso único, favorável à primeira etapa do Plano Real. Foi um momento difícil em que você não tinha espaço para fazer oposição neste país. Era 100% pensamento único. Eu confesso a você que no meu governo teve 100% de pensamento contra.

Mas é passado?

Eu aprendi a não ficar com raiva da imprensa porque acredito na capacidade de discernimento do leitor, do ouvinte e do telespectador. A prova disso é a minha reeleição. Quando o cidadão é 100% contra, o leitor percebe. Quando ele é 100% a favor, o leitor também percebe. E tanto 100% contra como 100% a favor não têm credibilidade. A imprensa brasileira tem que informar corretamente a opinião pública. Acho que houve um tempo em que era 100% contra.

Como na minha vida eu nunca tive muito afago, aprendi a conviver. E o povo está ficando inteligente. Aquela idéia de que alguém é formador de opinião pública vai por terra se a pessoa não for verdadeira. Por mais que eu tenha queixa da imprensa, e não conheço político que não tenha queixa da imprensa, ela, por bem ou por mal, é um dos pilares da consagração da democracia no país.

Eu acho fantástico o cara que faz manchete no jornal. Gostaria de um cara desses para fazer manchete quando eu fosse candidato, porque às vezes a manchete não tem nada a ver com a matéria. Acho fantástica a criatividade. Obviamente, a manchete é o R$ 1,99, um chamariz para o cara entrar na loja e fazer a compra.”

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