segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

A DINÂMICA DO PROCESSO CIVILIZATÓRIO

Li na revista ““Ideias em Destaque” o seguinte artigo de Manuel Cambeses Júnior. O autor é Coronel-Aviador, conferencista especial da Escola Superior de Guerra, membro titular do Instituto de Geografia e História Militar do Brasil e vice-diretor do Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica (INCAER):

"A base de tudo é o homem, a sua visão de mundo e a sociedade que cria. O homem e a sociedade humana tem em si variáveis e processos que podem nos permitir explicar a civilização ou o domínio crescente do homem daquilo que lhe cerca.

Nossa tarefa, contudo, extrapola a visão do historiador ou do antropólogo ao tentar dar essa explicação. É fácil tanto para um como para outro explicar porque Atenas ou Esparta colocavam o seu mundo na Grécia, ou Roma colocava o seu mundo no Mar Mediterrâneo, ou porque chegou-se a uma época em que o mundo está colocado no planeta Terra.

Para eles o entendimento deste pressuposto tenderia a restabelecer, de forma estranha e paradoxal, o mundo de Ptolomeu. A Terra, todos sabemos, não é mais, conceitualmente, na astronomia, como foi por longo tempo, o centro do Universo. Os astros não giram em torno da Terra e isto foi provado por Copérnico, há quatro séculos. Entretanto, cada vez mais, nos últimos quatro séculos, a Terra, em sua totalidade, tem sido ocupada pelas mesmas questões e tem sido arrebatada pelas mesmas idéias. E de idéias que, em seu interior, carregam o processo civilizatório. Na verdade, a Terra tem sido, cada vez mais, o centro de tudo, ao ser progressivamente ocupada pela civilização.

Para nós, que olhamos sob o prisma das relações entre dualidades, por isto a Terra tem-se transformado, crescentemente, em um campo de luta, em que se digladiam, de um lado, a intransigência, e suas aliadas: o mercado e a desordem natural; e, de outro lado, a razão e suas forças principais: o planejamento e a ordem construída. Este é o fenômeno. É a civilização. Não é a globalização.

Diferentemente do que tem sido propagado, a prevalência das mesmas teses no mesmo espaço e a sua luta tem explicitado, crescentemente, as dualidades primitivas das sociedades humanas: a do centro com a periferia, e a da barbárie com a cultura. Entretanto, é de fundamental importância o entendimento que estes contrários sempre formam uma única unidade. Existe permanentemente uma unidade dos contrários.

Esta é a verdadeira explicação porque a disputa desse espaço, que é finito, que é limitado, tem sido feita, nos últimos quatrocentos anos, com muito maior vigor e rapidez, pelas partes que compõem o todo.

Entretanto, chegar-se a este estágio no processo civilizatório requereu um permanente embate do homem com o universo. A conquista é uma ação de cooptação. Mas também é a afirmação de uma dominação. Há uma tese original - o homem - mas, também, há a sua antítese - o universo. Um para o outro.

A mediação entre esses contrários foi, até a época das luzes, o trabalho; hoje é a ciência. As contradições permanecem intocadas. Nem o trabalho, nem a ciência desvelam o ignoto. As perguntas iniciais permanecem sem respostas. Entretanto, é inegável que o homem se aproximou do Absoluto, desde que se levantou sobre as patas posteriores e andou em alguma planície deste, na época, para ele, imenso planeta. E isto se tornou possível porque assumiu a posição de ordenador de seu contraditório: a natureza - materialização primeira do universo. O homem desde que racionalizou, se inconformou. E desde que se inconformou, defrontou-se com a intransigência.

As razões desta aproximação com o Absoluto são várias. Uma, no entanto, é unânime, em todos os pensadores que discutem o progresso humano: a vida social e a sua acompanhante permanente, a vida política. E estas têm, como sua última criatura: o Estado-Nação.

A idéia de Estado-Nação é um pensamento muito elaborado. Seu entendimento pressupõe o caminhar por uma linha ininterrupta de idéias, através do espaço e do tempo, que ligam as hordas às grandes potências. O Estado - Nação constitui o resultado das soluções silenciosas e progressivas das questões que surgiram da convivência humana.

Querer, num ensaio, estabelecer o preciso momento e a melhor via em que se deram essas soluções, é buscar o inalcançável. Entretanto, a forma dessas soluções sempre foi a mesma: o pacto. Seja aquele resultante da imposição do mais poderoso e que, portanto, decorre da racionalização de desvantagens; seja aquele que advém da composição de vontades, e que, portanto, resulta da racionalização de vantagens.

O pacto é, antes de tudo, um produto da razão. A linha que liga as hordas à sociedade atual - à civilização - é um contínuo de pactos, sendo, talvez, a mais visível expressão da razão. O Estado-Nação é a última estação dessa linha ininterrupta de acordos. Não a última, mas a última conhecida. Não a definitiva, mas a última praticada. Conhecer o Estado-Nação é conhecer a história da razão e de seus pactos.

O entendimento de que o Estado-Nação resulta da razão é importantíssimo. O homem em sua inteireza se defronta internamente com muitas dualidades. As mais importantes para a sua existência, são, em nossa opinião: o inconformismo versus a resignação e a razão versus a emoção. A resignação e a emoção conceituamos como formadores da intransigência, enquanto que consideramos o inconformismo e a razão como os estimuladores da conquista do universo, pelo gênero humano. Sintetizamos, assim, o processo. E esta síntese nos acompanhará, ao longo deste ensaio.

A idéia de Estado Nacional resulta, portanto, da posição ordenadora do homem. Entretanto, esta posição ordenadora se processa por ondas sucessivas. Pode-se observar passagens da história da civilização, onde se verifica empiricamente a formulação proposta e que foi por nós nomeada como teoria do retardo.

Em síntese, há ações que desencadeiam a desordem e há ações que restabelecem uma nova ordem, em um novo patamar. Ruptura e equilíbrio transitório, estes se alternam.

Nada pode explicar melhor a marcha do processo civilizatório, do que o aceite da teoria do retardo e das rupturas que nela estão consignadas e que resultam da ação ordenadora do homem, fruto de seu inconformismo. Ruptura processada segue-se uma nova ordem.

Esta nova ordem é início de uma nova desordem. De certa forma, isto se expressa nas idéias contidas nos versos abaixo:

Pérsia era o Centro, Grécia era a periferia.
Pérsia era culta, Grécia era bárbara. Veio o tempo;
Grécia era o centro, Roma era a periferia.
Grécia era culta, Roma era bárbara. Veio o tempo;
Roma era o centro, Bizâncio era a periferia.
Roma era culta, Bizâncio era bárbara. Veio o tempo;
Bizâncio era o centro, os árabes estavam na periferia.
Bizâncio era culta, os árabes eram bárbaros. Veio o tempo;
Os árabes estavam no centro, a Península Ibérica era a periferia.
Os árabes eram cultos, a Península Ibérica era bárbara. Veio o tempo;
A Península Ibérica era o centro, a Inglaterra era a periferia.
A Península Ibérica era culta, a Inglaterra era bárbara. Veio o tempo;
A Inglaterra era o centro, a América era a periferia.
A Inglaterra era culta, a América era bárbara. Veio o tempo;
A América é o centro. A América é culta. O tempo virá...

Estes versos, além de mostrarem, de forma singela, o predomínio sempre transitório no processo civilizatório, mostram, de forma inequívoca, a ruptura e o estabelecimento de uma nova ordem, sucessivas vezes, no decorrer deste processo.

A simplificação estabelecida permite ainda concluir que a dinâmica do processo civilizatório, que aqui foi nomeado como teoria do retardo, pode ser assim resumida: toda periferia busca o centro e toda a barbárie busca a cultura.

O centro exerce sobre a periferia dois papéis: o de repulsor e o de articulador. O centro não tem a dinâmica, que é atributo exclusivo da periferia. O centro deve ser sempre visto como um castelo sitiado.

O papel de repulsor do centro repousa na capacidade que desenvolve de repelir o que aqui serão nomeadas de forças de atração ou de avanço, e que resultam da busca do centro pela periferia. Dentre essas, podemos citar: a migração, o comércio, o fluxo de idéias, etc. Quanto mais bem sucedido for o centro na repulsão dessas forças, na transformação delas em forças centrífugas, maior sucesso poderá ter o centro em permanecer centro.

O papel de articulador do centro reside na capacidade que desenvolve, de organizar as forças caóticas que existem na periferia, no sentido de compô-las, objetivando minimizar sua resultante, buscando uma soma zero, o que, em muito, pode, também, contribuir para seu papel de repulsor.Já a cultura, esta exerce, sobre a barbárie, dois outros papéis: o de atrator e o de organizador.

A função de atrator da cultura, algo imanente, é o que movimenta as sociedades, dá a dinâmica ao processo e provoca a atração da periferia para o centro. A função de organizador dá, à cultura, a capacidade de vetorializar a barbárie de acordo com seus interesses.

A ruptura se processa quando a barbárie atinge o centro com força suficiente para se impor. Não se trata, portanto, de algo que resulte de um determinismo. Nem toda periferia está fadada a chegar ao centro, nem toda a barbárie está vocacionada para chegar à cultura. Trata-se de um fenômeno de natureza similar ao da fecundação. A busca não é a materialização. Assim como só o mais competente espermatozóide é que pode aspirar fecundar o óvulo, assim, também, só a mais competente barbárie é que pode aspirar provocar ruptura. Não é a periferia que rompe o centro, é a barbárie mais competente.

Da análise procedida verifica-se que a barbárie mais competente tem duas características claras: em primeiro lugar um alto grau de coesão social e uma posição contestatória da cultura dominante. Para se chegar ao centro tem-se de ter coesão social e tem-se de ser contestatório. Periferias alinhadas nunca chegaram ao centro.

Outro ponto, muito importante, é o fato que o centro nem sempre é a cultura, pois essa sempre só consegue preencher, plenamente, suas funções atratora e organizadora no centro, ou, melhor dizendo, quando a antiga periferia passa a ser o novo centro. Por isso que o começo de um novo centro é sempre na barbárie. Por isso que a cultura do antigo centro sempre é absorvida pelo novo centro.

Este choque entre periferia e centro, que é a condição para o sucesso do processo civilizatório, exige, do lado da barbárie, uma ação ordenadora para processar a ruptura, e um alto grau de coesão social. E essa ação ordenadora resulta dos pactos que se processam no âmbito das sociedades periféricas. Resulta, hoje, dada a complexidade das questões postas, de acordos que só poderão se processar no âmbito do Estado-Nação.

Esta é a razão pela qual enfatizamos neste ensaio o tema do Estado-Nação, também por alguns chamado de Estado Nacional. Por que Estado-Nação? Por que não simplesmente Estado? Ou por que não simplesmente Nação? Porque nem Nação, nem Estado são a mais elaborada ordenação humana na vida política e nem sozinhos foram capazes de alterar, nos últimos quatrocentos anos, as relações no centro e na cultura. E nem o serão nos próximos cem anos. Isto porque o conceito de Nação é uma abstração contemplativa, apesar de mobilizadora, e o conceito de Estado é uma abstração mobilizadora, apesar de contemplativa. Mas, no Estado-Nação, contemplação e mobilização se juntam, tornando possível a realização coletiva, tanto de um, como de outro. Tornando possível a construção de um Projeto Nacional. O Estado Nacional Moderno se explicita por um Projeto Nacional.

De certa forma essas colocações recuperam a visão de Hagel em sua inteireza. Como o filósofo apresentou, a evolução histórica resulta da solução da tensão entre opostos, que se dá de forma repentina. Desaparecendo os opostos, desaparecia, na visão do filósofo, a tensão. Isto é óbvio se só existem duas partes. Poderia, então, ser a conclusão, de quem esteja trabalhando sob a ótica hegeliana, ao tratar da dualidade centro e periferia, ou da dualidade barbárie e cultura, que existiriam soluções na tensão entre esses opostos. Ao se tratar dessas dualidades as duas partes são múltiplas, o que garante a permanente tensão e, conseqüentemente, a imortalidade da história. Síntese feita, antítese colocada. Novo centro, nova periferia. Nova cultura, nova barbárie.

Em todo processo social é o sonho que o move. Após a queda do Muro de Berlim, um velho maniqueísmo recolheu-se. Aquele que começou vendo o mundo como um embate entre girondinos e jacobinos e acabou vendo-o como um embate entre Leste e Oeste. Pode-se discutir, agora, a questão central do processo civilizatório, sem as pressões de hipóteses pré-estabelecidas. Hegel afirmava que a razão universal ou o espírito universal era a mola propulsora da história. Marx achava que não era esse ente espiritual o demiurgo das transformações e que Hegel havia posto as coisas de cabeça para baixo. Para Marx, as condições materiais de vida eram decisivas para o processo histórico. Desta forma, Marx dizia que não eram os pressupostos espirituais numa sociedade que levavam a modificações materiais, mas sim o oposto: as condições materiais é que determinavam em última instância as espirituais. Ao assim fazê-lo, Marx reduzia o sonho humano ao simples olhar econômico, pois só contemplava a busca econômica como a única responsável pelas modificações em todos os outros setores e, conseqüentemente, pelo rumo da história.

Entretanto, a simplificação marxista poderia explicar as revoluções do seu tempo, o século XIX. Como a física newtoniana explicava parcela restrita dos fenômenos da natureza, aquela que se dá no exclusivo mundo da mecânica clássica, a visão marxista poderia explicar as questões sociais do seu tempo, o tempo de transição da primeira para a segunda revolução industrial.

Cumpre, entretanto, recuperar Hegel. O sonho, fruto do espírito, é o impulsionador da história. E este sonho é muito mais claro e muito mais forte na periferia e na barbárie. O que Hegel colocava em sua filosofia era a permanente dinâmica. Existe uma dinâmica social. E a origem desta dinâmica é o sonho coletivo. Sonho que resulta e se processa no âmbito de uma sociedade. Diferentemente do que Marx havia colocado, o maior choque, o grande responsável pelo processo civilizatório, é o que se processa entre sociedades e não aquele que se dá dentro de uma sociedade. O maior dos choques é o que se dá entre o sonho coletivo de uma sociedade emergente e a intransigência, ou seja, tudo aquilo que se opõe à dinâmica social. Ou seja, a intransigência nada mais é do que a ação do centro contra a periferia, da cultura contra a barbárie.

Para nós brasileiros, que somos considerados bárbaros e periféricos, é chegada a hora de assumirmos a dinâmica que estes atributos nos impõem. E esta dinâmica se vetorializa com um Projeto Nacional. Poderemos ser ou não ser. Mas teremos de tentar. Se o conseguirmos daremos ao processo civilizatório um novo espaço em ser.

Espaço este onde ibéricos, negros, índios, holandeses, mais antigamente, e japoneses, alemães e italianos, mais proximamente, se sentiram latinos e recuperaram para o Lácio o fio condutor da história."

Nenhum comentário: