Por Saul Leblon
“Se existe aprendizado em política, a épica mobilização da sociedade venezuelana nos últimos dias não deve ser tratada como simples efeméride.
Muitos gostariam de restringí-la assim, nos limites de um cortejo emotivo.
Adeptos dessa tese conveniente não perfilam apenas no campo conservador.
O que se viu e se vê em Caracas impõem-se, no entanto, como uma biblioteca de reflexões estratégicas para os socialistas.
As homenagens póstumas a Hugo Chávez calam e imobilizam aqueles que, há meses, festejavam a mórbida contagem regressiva.
Ruminava na alma conservadora a esférica certeza de que a morte do líder bolivariano levaria à implosão quase instantânea do regime, iniciado há 14 anos com a primeira de uma série de vitórias eleitorais.
Não foi esse o recado do luto vermelho.
Ele recobre a Venezuela desde a 3ª feira passada com um manto de dor.
Mas também de prontidão política.
E de impressionante adesão a um projeto, frequentemente desqualificado como simples petropopulismo pela mídia dominante.
Partidos e movimentos progressistas de todo o continente têm algo a aprender com o avassalador amálgama que tomou conta das ruas venezuelanas.
A impressionante vitalidade daquilo que se imaginava menos abrangente e mais frágil do que tem se mostrado cobra espaço de discussão na agenda progressista.
A entrevista do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães à “Carta Maior” [transcrita aqui neste blog em http://www.democraciapolitica.blogspot.com.br/2013/03/samuel-p-guimaraesdilma-e-cristina.html], feita por Dario Pignotti, vai nessa direção.
Pontua questões cruciais ensejadas por um movimento denso e abrupto, como costumam ser as rupturas de ciclo histórico.
Por exemplo.
Se os acontecimentos na Venezuela suscitarem no conservadorismo a percepção de que a via eleitoral ficou estreita demais para retomar o poder, que contrapesos poderiam --deveriam-- ser acionados?
O embaixador Pinheiro Guimarães conhece bem as interações da luta geopolítica e não titubeia: exorta Dilma e Cristina a formarem os alicerces de um muro antigolpista na região.
É um primeiro indicativo.
A integração latino-americana agiganta-se em importância como vigia e fiador da nova fronteira da soberania no continente: a construção da justiça social.
Há mais que isso, porém.
Ao abordar a necessidade de um aparato popular para defender os avanços e conquistas acossados, Samuel Pinheiro resvala no tema tabu da luta socialista no continente.
Não qualquer continente.
Aquele em que a insurreição armada de Che Guevara fracassou, em outubro de 1967, na Bolívia.
Aquele em que a via democrática de Salvador Allende para o socialismo foi massacrada, em setembro de 1973, no Chile.
Aquele em que, desde então, o socialismo passou a figurar no discurso progressista hegemônico --o que não implica negligenciar as posições minoritárias à esquerda dele-- como a margem de um rio desprovida de pontes e embarcações de acesso.
Revezes históricos, seguidos de um ciclo de regressividade neoliberal, achataram o debate socialista na região. Lubrificaram o acanhamento de uns e a rendição mercadista de outros. Reduziu-se o socialismo a um horizonte imaginário pouco, ou nunca, articulado às ações da realidade presente.
A tese da radicalização da democracia política ocupou esse espaço como uma legenda-ônibus, recheada da difusa intenção de erguer pontes sobre um vazio estratégico.
Que está prestes a completar 40 anos.
Em 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet provou de forma sangrenta que a democracia representativa não comportava as esperanças de uma transição pacífica para o socialismo.
Ao contrário do que preconizava a Frente Popular liderada pelo PS e pelo PC chileno.
O que aconteceu no Chile, seu custo em vidas e acuamento histórico, desarmou a discussão sobre a transição para o socialismo latino-americano.
A coragem e a dignidade inexcedíveis de Salvador Allende e a de milhares de homens e mulheres que, a exemplo dele, perderam a vida e entes queridos no golpe, não estão em questão.
Mas o debate sobre os erros do processo e, sobretudo, a busca de alternativas, devem ser retomados à luz da nova realidade recortada por um duplo divisor: a emergência de um colar de governos progressistas na região e o desmanche planetário da ordem neoliberal.
O governo da Frente Popular de Allende ensejou certa prostração do Estado e da sociedade diante da reação beligerante dos interesses que nunca toleraram o seu projeto socialista.
Allende era o presidente de um governo minoritário no Congresso e na Câmara.
Invariavelmente traído por um centro democrata-cristão, que nunca hesitou em pregar os derradeiros pregos em seu caixão.
Allende endossou, no seu cálculo político, dois mitos: a propalada solidez de 100 anos de democracia congressual chilena e a decantada postura profissional do Exército do país.
Foi fiel as suas ilusões.
Desestimulou e proibiu a organização de milícias operárias de autodefesa. Prestigiou e nomeou para seu ministério generais 'profissionais' --um deles, Augusto Pinochet, era seu chefe do Exército quando deu o golpe.
Sujeitou-se ao desgaste do jogo parlamentar, demitindo ministros e desautorizando iniciativas sob exigência do Congresso.
Finalmente, cedeu em questões nevrálgicas, como a da mídia, ao liberar 155 rádios do guarda-chuva da cadeia nacional.
Permitiria, assim, a difusão encorpada de uma campanha de insatisfação popular --em boa parte assentada na escassez deliberada de produtos-- que daria o lastro 'popular' ao golpe.
Sabe-se que o processo chileno foi um dos temas frequentes das conversas entre Chávez e Fidel Castro ao longo da última década.
Faz sentido.
Nenhuma outra experiência de governo popular levou tão a sério o desafio de dilatar as fronteiras da democracia participativa, quando a revolução bolivariana na Venezuela.
A consistência dessa arquitetura tem um encontro com a hora da verdade a partir de agora.
Por certo há lacunas.
A inexistência de um partido enraizado e capaz de comandar o processo na ausência de Chávez é uma delas.
Mas a prontidão e a abrangência do que se viu e se vê nas ruas de Caracas nestes dias enseja otimismo realista.
No mínimo, convoca o amplo leque de forças progressistas do continente a retomar o debate adormecido da transição para o socialismo.
À luz dos acontecimentos presentes e futuros na Venezuela, trata-se de recolocar na ordem do dias questões da teoria e da prática de uma transição que o ciclo de Chávez tirou do baú do esquecimento latino-americano.”
Muitos gostariam de restringí-la assim, nos limites de um cortejo emotivo.
Adeptos dessa tese conveniente não perfilam apenas no campo conservador.
O que se viu e se vê em Caracas impõem-se, no entanto, como uma biblioteca de reflexões estratégicas para os socialistas.
As homenagens póstumas a Hugo Chávez calam e imobilizam aqueles que, há meses, festejavam a mórbida contagem regressiva.
Ruminava na alma conservadora a esférica certeza de que a morte do líder bolivariano levaria à implosão quase instantânea do regime, iniciado há 14 anos com a primeira de uma série de vitórias eleitorais.
Não foi esse o recado do luto vermelho.
Ele recobre a Venezuela desde a 3ª feira passada com um manto de dor.
Mas também de prontidão política.
E de impressionante adesão a um projeto, frequentemente desqualificado como simples petropopulismo pela mídia dominante.
Partidos e movimentos progressistas de todo o continente têm algo a aprender com o avassalador amálgama que tomou conta das ruas venezuelanas.
A impressionante vitalidade daquilo que se imaginava menos abrangente e mais frágil do que tem se mostrado cobra espaço de discussão na agenda progressista.
A entrevista do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães à “Carta Maior” [transcrita aqui neste blog em http://www.democraciapolitica.blogspot.com.br/2013/03/samuel-p-guimaraesdilma-e-cristina.html], feita por Dario Pignotti, vai nessa direção.
Pontua questões cruciais ensejadas por um movimento denso e abrupto, como costumam ser as rupturas de ciclo histórico.
Por exemplo.
Se os acontecimentos na Venezuela suscitarem no conservadorismo a percepção de que a via eleitoral ficou estreita demais para retomar o poder, que contrapesos poderiam --deveriam-- ser acionados?
O embaixador Pinheiro Guimarães conhece bem as interações da luta geopolítica e não titubeia: exorta Dilma e Cristina a formarem os alicerces de um muro antigolpista na região.
É um primeiro indicativo.
A integração latino-americana agiganta-se em importância como vigia e fiador da nova fronteira da soberania no continente: a construção da justiça social.
Há mais que isso, porém.
Ao abordar a necessidade de um aparato popular para defender os avanços e conquistas acossados, Samuel Pinheiro resvala no tema tabu da luta socialista no continente.
Não qualquer continente.
Aquele em que a insurreição armada de Che Guevara fracassou, em outubro de 1967, na Bolívia.
Aquele em que a via democrática de Salvador Allende para o socialismo foi massacrada, em setembro de 1973, no Chile.
Aquele em que, desde então, o socialismo passou a figurar no discurso progressista hegemônico --o que não implica negligenciar as posições minoritárias à esquerda dele-- como a margem de um rio desprovida de pontes e embarcações de acesso.
Revezes históricos, seguidos de um ciclo de regressividade neoliberal, achataram o debate socialista na região. Lubrificaram o acanhamento de uns e a rendição mercadista de outros. Reduziu-se o socialismo a um horizonte imaginário pouco, ou nunca, articulado às ações da realidade presente.
A tese da radicalização da democracia política ocupou esse espaço como uma legenda-ônibus, recheada da difusa intenção de erguer pontes sobre um vazio estratégico.
Que está prestes a completar 40 anos.
Em 11 de setembro de 1973, o general Augusto Pinochet provou de forma sangrenta que a democracia representativa não comportava as esperanças de uma transição pacífica para o socialismo.
Ao contrário do que preconizava a Frente Popular liderada pelo PS e pelo PC chileno.
O que aconteceu no Chile, seu custo em vidas e acuamento histórico, desarmou a discussão sobre a transição para o socialismo latino-americano.
A coragem e a dignidade inexcedíveis de Salvador Allende e a de milhares de homens e mulheres que, a exemplo dele, perderam a vida e entes queridos no golpe, não estão em questão.
Mas o debate sobre os erros do processo e, sobretudo, a busca de alternativas, devem ser retomados à luz da nova realidade recortada por um duplo divisor: a emergência de um colar de governos progressistas na região e o desmanche planetário da ordem neoliberal.
O governo da Frente Popular de Allende ensejou certa prostração do Estado e da sociedade diante da reação beligerante dos interesses que nunca toleraram o seu projeto socialista.
Allende era o presidente de um governo minoritário no Congresso e na Câmara.
Invariavelmente traído por um centro democrata-cristão, que nunca hesitou em pregar os derradeiros pregos em seu caixão.
Allende endossou, no seu cálculo político, dois mitos: a propalada solidez de 100 anos de democracia congressual chilena e a decantada postura profissional do Exército do país.
Foi fiel as suas ilusões.
Desestimulou e proibiu a organização de milícias operárias de autodefesa. Prestigiou e nomeou para seu ministério generais 'profissionais' --um deles, Augusto Pinochet, era seu chefe do Exército quando deu o golpe.
Sujeitou-se ao desgaste do jogo parlamentar, demitindo ministros e desautorizando iniciativas sob exigência do Congresso.
Finalmente, cedeu em questões nevrálgicas, como a da mídia, ao liberar 155 rádios do guarda-chuva da cadeia nacional.
Permitiria, assim, a difusão encorpada de uma campanha de insatisfação popular --em boa parte assentada na escassez deliberada de produtos-- que daria o lastro 'popular' ao golpe.
Sabe-se que o processo chileno foi um dos temas frequentes das conversas entre Chávez e Fidel Castro ao longo da última década.
Faz sentido.
Nenhuma outra experiência de governo popular levou tão a sério o desafio de dilatar as fronteiras da democracia participativa, quando a revolução bolivariana na Venezuela.
A consistência dessa arquitetura tem um encontro com a hora da verdade a partir de agora.
Por certo há lacunas.
A inexistência de um partido enraizado e capaz de comandar o processo na ausência de Chávez é uma delas.
Mas a prontidão e a abrangência do que se viu e se vê nas ruas de Caracas nestes dias enseja otimismo realista.
No mínimo, convoca o amplo leque de forças progressistas do continente a retomar o debate adormecido da transição para o socialismo.
À luz dos acontecimentos presentes e futuros na Venezuela, trata-se de recolocar na ordem do dias questões da teoria e da prática de uma transição que o ciclo de Chávez tirou do baú do esquecimento latino-americano.”
FONTE: escrito por Saul Leblon no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=1205) [Imagem do Google adicionada por este blog ‘democracia&política’].
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