Por Leonardo Boff
Leonardo Boff
“O objeto da Comissão da Verdade deve, sim, tratar dos crimes e dos desaparecimentos perpetrados pelos agentes do Estado ditatorial. É sua tarefa precípua e estatutária. Mas não pode se reduzir a estes fatos. Há o risco de os juízos serem pontuais. Precisa-se analisar o contexto maior, que permite entender a lógica da violência estatal e que explica a sistemática produção de vítimas. Mais ainda, deixa claro o trauma nacional que significou viver sob suspeitas, denúncias, espionagem e medo paralisador.
Nesse sentido, vítimas não foram apenas os que sentiram em seus corpos e nas suas mentes a truculência dos agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação brasileira. Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o período do regime militar.
Importa assinalar claramente que o assalto ao poder foi um crime contra a Constituição. Configurou uma ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado para, a partir deles, montar uma ordem regida por atos institucionais, pela repressão e pelo estado de terror. Bastava a suspeita de alguém ser subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e sequestrados por engano, como inocentes camponeses, para logo serem seviciados e torturados. Muitos não resistiram, e sua morte equivale a um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo os esquecidos dos esquecidos, que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre 1964-1979.
O que os militares cometeram foi um crime lesa-pátria. Alegam que se tratava de uma guerra civil, um lado querendo impor o comunismo e o outro defendendo a ordem democrática. Essa alegação não se sustenta. O comunismo nunca representou entre nós ameaça real. Na histeria do tempo da Guerra Fria, todos os que queriam reformas na perspectiva dos historicamente condenados e ofendidos – as grandes maiorias operárias e camponesas – eram logo acusados de comunistas e de marxistas, mesmo que fossem bispos, como o insuspeito dom Hélder Câmara. Contra eles, não cabia apenas a vigilância, mas para muitos a perseguição, a prisão, o interrogatório aviltante, o pau de arara feroz, os afogamentos desesperadores. Os alegados “suicídios” camuflavam apenas o puro e simples assassinato. Em nome do combate ao perigo comunista, se assumiu a prática comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns casos, se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres como admitiu Cláudio Guerra, ex-agente do DOPS de São Paulo.
O grande perigo para o Brasil sempre foi o capitalismo selvagem. Usando palavras de Capistrano de Abreu, nosso historiador mulato, “capou e recapou, sangrou e ressangrou” as grandes maiorias de nosso povo.
O Estado ditatorial militar, por mais obras que tenha realizado, fez regredir política e culturalmente o Brasil. Expulsou ou obrigou ao exílio nossas inteligências e nossos artistas mais brilhantes. Afogou lideranças políticas e ensejou o surgimento de súcubos que, oportunistas e destituídos de ética e de brasilidade, se venderam ao poder ditatorial em troca de benesses, que vão de estações de rádio a canais de televisão.
Os que deram o golpe de Estado devem ser responsabilizados moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro.
Os militares já fora do poder garantiram sua impunidade e intangibilidade graças à forjada anistia geral e irrestrita para ambos os lados. Em nome desse status, resistem e fazem ameaças, como se tivessem algum poder de intervenção, que, na verdade, é inexistente e vazio. A melhor resposta é o silêncio e o desdém nacional para a vergonha internacional deles. Os militares que deram o golpe se imaginam que foram eles os principais protagonistas dessa façanha nada gloriosa. Na sua indigência analítica, mal suspeitam que foram, de fato, usados por forças muito maiores que as deles.
René Armand Dreifuss escreveu, em 1980, sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título “1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe” (Ed. Vozes, 1981). Trata-se de livro com 814 páginas, das quais 326 de documentos originais. Por esses documentos, fica demonstrado: o que houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força militar.
A partir dos anos 60 do século passado, se formou o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC). Compunham uma rede nacional que disseminava ideias golpistas, composta por grandes empresários multinacionais, nacionais, alguns generais, banqueiros, órgãos de imprensa, jornalistas, intelectuais, a maioria listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor, “eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado” (pág. 163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos. O inspirador desse grupo era o general Golbery de Couto e Silva, que já em “em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao poder” (pág. 186).
A conspiração, pois, estava em marcha, há bastante tempo. Aproveitando-se da confusão política criada ao redor do presidente João Goulart, tido como o portador do projeto comunista, esse grupo viu a ocasião apropriada para realizar seu projeto. Chamou os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante, nacional e multinacional, usando o poder militar.
Conclui Dreifuss: “O ocorrido em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um movimento civil-militar; o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG (Escola Superior de Guerra) organizaram a tomada do poder do aparelho de Estado” (pág. 397). Especificamente, afirma: ”A história do bloco de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964, quando os novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o regime e o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus objetivos” (pág. 489). Todo o aparato de controle e repressão era acionado em nome da Segurança Nacional que, na verdade, significava a Segurança do Capital.
Os militares inteligentes e nacionalistas de hoje deveriam dar-se conta de como foram usados por aquelas elites oligárquicas, que não buscavam realizar os interesses gerais do Brasil, mas, sim, alimentar sua voracidade particular de acumulação, sob a proteção do regime autoritário dos militares.
A Comissão da Verdade prestaria esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz essa trama. Ela simplesmente cumpriria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas da verdade de fatos individualizados, mas da verdade do fato maior da dominação de uma classe poderosa, nacional, associada à multinacional, para, sob a égide do poder discricionário dos militares, tranquilamente, realizar seus objetivos corporativos. Isso nos custou 21 anos de privação da liberdade, muitos mortos e desaparecidos, e de muito padecimento coletivo.”
FONTE: publicado no “Jornal do Brasil”. O autor, Leonardo Boff, pseudônimo de Genézio Darci Boff, nasceu em Concórdia-SC em 14/12/1938. É teólogo, escritor e professor universitário, expoente da Teologia da Libertação. Foi membro da Ordem dos Frades Menores, mais conhecidos como Franciscanos. Artigo transcrito no portal da FAB (http://www.fab.mil.br/portal/capa/index.php?datan=27/05/2012&page=mostra_notimpol) [Imagens do Google adicionadas por este blog ‘democracia&política’].
Nenhum comentário:
Postar um comentário