Li na Folha de São Paulo de domingo o seguinte artigo de Clóvis Rossi:
Presidente da França, que chega amanhã ao país, defende "refundação do capitalismo"
Para francês, crise não é do capitalismo, mas de um sistema que vem dando primazia ao especulador sobre o empreendedor
“O presidente Nicolas Sarkozy chega amanhã precedido de juras de amor ao Brasil, em entrevista à Folha, a ponto de dizer que "a reforma da governança mundial não é uma opção. Trata-se de uma necessidade, uma urgência".
Claro que tal reforma tem que incluir o Brasil: "Quem pode imaginar hoje poder resolver os problemas do mundo sem países como a China, a Índia e, é claro, o Brasil?"
O presidente da França aproveitou a entrevista -feita por e-mail- para explicar melhor o conceito de "refundação do capitalismo", expressão que utilizou no auge da crise e provocou não poucos receios em Washington. Sarkozy diz que a crise não é do capitalismo, mas de "um sistema que foi progressivamente dando primazia ao especulador sobre o empreendedor (...). O capitalismo não é a lei da selva, não é a irresponsabilidade generalizada, não é a primazia da especulação".
FOLHA - O QUE O SR. QUER DIZER COM "REFUNDAÇÃO DO CAPITALISMO"?
NICOLAS SARKOZY - Tenho a convicção de que a crise financeira que estamos atravessando não é uma crise do capitalismo: é a crise de um sistema que se distanciou dos valores mais fundamentais do capitalismo. É a crise de um sistema que foi progressivamente dando primazia ao especulador sobre o empreendedor. É a crise de um sistema que levou os agentes econômicos a assumirem cada vez mais riscos, e riscos cada vez mais inconseqüentes. É a crise de um sistema que deixou os bancos especularem nos mercados em vez de fazerem seu papel, que é financiar o investimento e o desenvolvimento. O capitalismo não é a lei da selva, não é a irresponsabilidade generalizada, não é a primazia da especulação. Quando falo de reconstrução do capitalismo quero dizer que devemos voltar aos verdadeiros valores da economia de mercado, os que colocam o empreendedor e o desenvolvimento no centro da economia.
Devemos reconstruir um capitalismo regulado, um capitalismo onde os bancos cumpram com o seu papel, um capitalismo onde o risco seja avaliado, assumido, onde as agências de avaliação tenham um comportamento irrepreensível e sejam controladas, um capitalismo fundado na transparência e não na opacidade. Foi isso que propus e que começamos a construir, todos juntos, em 15 de novembro passado, na reunião do G20 em Washington.
Em Washington, as maiores economias do mundo entenderam-se sobre a necessidade de uma reativação econômica em âmbito mundial, de uma nova regulação dos mercados financeiros, de uma nova governança econômica mundial, mais aberta aos países emergentes, e da recusa ao protecionismo. A cúpula possibilitou avanços extremamente concretos em matéria de vigilância das agências de avaliação, de melhora da regulação, sobretudo em matéria contábil e de regra prudencial, ou no que se refere à política de remuneração nos bancos. Também decidimos abrir o Fórum de Estabilidade Financeira aos países emergentes.
A cúpula de Washington foi o marco de uma virada. O que estamos descobrindo desde então sobre as práticas de determinados financistas e as lacunas na regulação conforme é praticada hoje reforça em nós a idéia de que precisamos mudar rapidamente as coisas para devolver a confiança aos poupadores, aos investidores, a todo mundo. Não tenho dúvida de que o próximo G20 nos permitirá ir ainda mais longe.
FOLHA - ATÉ AGORA TODOS OS PROGRAMAS DE SOCORRO AOS BANCOS PRODUZIRAM MAGROS RESULTADOS EM MATÉRIA DE LIBERAÇÃO DE CRÉDITOS. O QUE FALTA PARA QUE RETORNE A CONFIANÇA?
SARKOZY - Os programas a que se refere já nos permitiram evitar que o sistema financeiro mundial desmoronasse totalmente. Não é o que eu chamaria de um magro resultado. Não se esqueça de que passamos a dois dedos da catástrofe, quando, com a falência do Lehman Brothers, passamos de uma grave crise financeira ao que os economistas chamam de crise "sistêmica", uma crise de confiança generalizada no sistema financeiro e um risco de falências em série das instituições financeiras.
Foi o que fizemos na Europa, ao adotar um plano de salvação que compreendia garantias importantes sobre os empréstimos interbancários, que são o pulmão do sistema financeiro, e ao intervir pontualmente para ajudar certo número de bancos em dificuldade.
A situação do crédito teria com isso voltado ao normal? É evidente que não, essas coisas levam tempo. Na França, estive por várias vezes com os representantes dos bancos e fui bem claro sobre o seguinte ponto: aqueles a quem estamos ajudando por meio dos bancos são as empresas e as famílias, e não os acionistas das instituições financeiras. Criamos um tal "Sr. Crédito", cuja missão é garantir que as pequenas e médias empresas tenham efetivamente acesso aos financiamentos. Foram feitos 50 mil contatos por meio de dirigentes de empresas ou de famílias para obtermos informações. Isso nos permitiu aprofundar as decisões dos bancos em 500 casos e evitar falências. Não nos contentamos com princípios ou injeções de bilhões. Examinamos caso a caso para encontrar uma forma de resolver as dificuldades.
A prioridade agora é devolvermos a confiança aos agentes econômicos por meio de medidas adequadas para a reativação. Nossa responsabilidade é enviar sinais políticos significativos, e o primeiro deles é continuar coordenando de maneira estreita nossos esforços.
FOLHA - HÁ MUITAS CRÍTICAS À UNIÃO EUROPÉIA, QUE DIZEM QUE ELA FOI INCAPAZ DE ATUAR EM CONJUNTO. LEMBRA A FAMOSA FRASE DE HENRY KISSINGER: "SE EU QUISER FALAR COM A EUROPA, QUE NÚMERO DE TELEFONE DISCO?" FALTA À UE CAPACIDADE DE AÇÃO CONJUNTA?
SARKOZY - O que vimos nas últimas semanas foi exatamente o inverso do que acaba de me descrever. Vimos uma Europa unida, uma Europa determinada, uma Europa que agiu.
Não só a Europa reagiu à crise de maneira coordenada como esteve na vanguarda das iniciativas tomadas em nível mundial. Foi o plano adotado pelos europeus em 12 de outubro, na cúpula da Zona do Euro, e depois, nos dias 15 e 16 de outubro, no Conselho Europeu, que inspirou o plano americano "Paulson 2". Também foi a Europa que propôs e obteve a reunião do G20, em Washington, que resultou na adoção de medidas extremamente concretas, e que se reunirá novamente no dia 2 de abril em Londres. E foi ainda a Europa que, durante o Conselho Europeu da semana passada, esteve entre os primeiros a implementar orientações decididas em Washington. Nesta crise, não só a Europa possuía um número de telefone, mas tinha sobretudo uma vontade e uma solidariedade inabaláveis. Essa Europa unida e na vanguarda também é a que pôs fim à crise entre a Rússia e a Geórgia, e é a que possibilitou avanços históricos, seja na luta contra o aquecimento climático, mas também na área de defesa e imigração. A Europa tem hoje consciência de que nunca é tão forte como quando está unida.”
SARKOZY QUER PARCERIA NO SETOR DE DEFESA
Francês define visita como uma relação entre parceiros, "fundada no diálogo e na transferência de experiência e tecnologia"
Para presidente da França, Lula é homem "de diálogo", e o Brasil assume um papel "essencial" entre os seus vizinhos da América Latina
A seguir, o presidente Nicolas Sarkozy fala das relações entre a França e o Brasil. (CR)
FOLHA - POR QUE NENHUM GOVERNO FOI CAPAZ DE ANTEVER O "TSUNAMI"?
SARKOZY - É errado dizer que não vimos nada do que estava se anunciando. Em agosto de 2007 escrevi à chanceler alemã, Angela Merkel, sobre a necessidade de melhorarmos radicalmente a transparência dos mercados e, no mês seguinte, lançamos um apelo conjunto em prol de um "código de conduta" para fundos especulativos. A verdade é que a amplitude e a violência da crise surpreenderam. Em primeiro lugar, porque a crise está precisamente ligada a uma insuficiente transparência e a uma certa opacidade dos sistemas financeiros, ligada à dissimulação dos riscos. O sistema havia se tornado de uma tal complexidade que aqueles que compravam títulos nem sabiam mais o que estavam comprando e ninguém, nem vendedores, eram capazes de avaliar o nível de risco dos produtos. É por isso que é essencial recolocarmos transparência no sistema. A segunda coisa é que a crise mudou de natureza e dimensão quando se tornou sistêmica após a falência do Lehman Brothers.
Os mecanismos de alerta que estamos instaurando serão determinantes, mas devemos também melhorar nossa capacidade de ação coletiva -ou seja, reformar a governança econômica mundial. Tomando o exemplo do FMI: temos de reforçar seu mandato para que possa efetivamente vigiar o sistema financeiro mundial. Mas, para isso, tem de ser legítimo, ou seja, mais representativo.
FOLHA - O SR. TEM SE MOSTRADO FAVORÁVEL À AMPLIAÇÃO DO G8, TALVEZ TRANSFORMANDO O G20 NO NOVO "GERENTE" ECONÔMICO DO PLANETA. MAS, NA CÚPULA DE WASHINGTON, A FORMALIZAÇÃO DO G20 COMO TAL NÃO OCORREU.
SARKOZY - A reforma da governança mundial não é uma opção. Trata-se de uma necessidade, uma urgência. Quem pode imaginar hoje poder resolver os problemas do mundo sem países como a China, a Índia e, é claro, o Brasil? Isso não faz sentido. Estamos no século 21 e vivemos com as instituições do século 20. Eu repeti em setembro, na Assembléia Geral da ONU: não podemos mais esperar para ampliar o Conselho de Segurança das Nações Unidas, especialmente ao Brasil, e não podemos mais esperar para ampliar o formato do G8. Vocês podem contar com minha determinação para avançarmos nessa questão.
No que diz respeito ao G20 de Washington, as coisas são um pouco diferentes. O objetivo do G20 não era institucionalizar um novo formato, mas chegar ao melhor quadro para se responder de maneira coordenada e eficaz à crise financeira mais grave que o mundo já conheceu desde os anos 1930.
FOLHA - QUE AVALIAÇÃO O SR. FAZ DA AÇÃO DO GOVERNO BRASILEIRO, SEJA NO G20, SEJA NA ESTABILIZAÇÃO DA AMÉRICA DO SUL OU DA AMÉRICA LATINA?
SARKOZY - A contribuição do Brasil no G20 é decisiva; ela é exigente, pois o presidente Lula é um homem de convicção que sabe sempre fazer valer seus argumentos com vigor e determinação, e é construtiva, porque o presidente Lula é acima de tudo um homem de diálogo. O papel do Brasil na região é essencial e extremamente positivo.
A respeito da integração regional, acredito muito na abordagem que o Brasil privilegia, que é fundada em projetos concretos, especialmente em matéria de infra-estrutura ou energia.
Estou de fato convencido de que é através de realizações concretas que se pode ganhar a adesão dos povos. O Brasil também propôs novas estruturas de diálogo, como a Unasul ou o Conselho de Defesa, que serão úteis. Esse apreço pela integração regional também se distingue nas concessões unilaterais que o Brasil fez no campo econômico e comercial em benefício de seus parceiros do Mercosul. Essas decisões não eram fáceis de tomar; requeriam coragem e uma verdadeira visão, mas era um gesto essencial para fazer com que a integração fosse aceita por outros membros do grupo.
Por fim, quero saudar a moderação do Brasil diante das reivindicações de seus vizinhos, muitas vezes dirigidas contra seus interesses. O Brasil soube reagir com lucidez e discernimento. É prova de maturidade política e democrática.
FOLHA - O PRESIDENTE LULA É UM OBCECADO COM O ETANOL. O SR. COMPARTILHA DESSE ENTUSIASMO? SE SIM, POR QUE A UE MANTÉM BARREIRAS PARA A IMPORTAÇÃO DO ETANOL BRASILEIRO?
SARKOZY - A visão, a audácia e o senso de inovação de que o Brasil dá provas, ao ser um dos primeiros a empreender o caminho dos biocombustíveis, merecem ser saudados. A França é favorável aos biocombustíveis. Com nossos parceiros europeus, empreendemos um ambicioso programa de biocombustíveis, que deve contribuir para respondermos aos nossos objetivos de lutar contra o aquecimento climático e reduzir a dependência energética. Contamos com a produção dos países-membros, mas também precisaremos recorrer às importações. Como é sabido, o Brasil é de longe o maior fornecedor de etanol da UE.
Gostaria de acrescentar que a recente crise alimentar mundial e o impacto da produção de biocombustíveis sobre preços dos alimentos me levou a agir rápido em relação ao apoio ao desenvolvimento dos biocombustíveis de nova geração, que nos permitirão produzir cinco vezes mais. Fazendo isso não puniremos os países que optaram pelos biocombustíveis, como o Brasil, mas poderemos reservar o máximo de hectares para a produção agrícola.
FOLHA - A FRANÇA É SEMPRE ACUSADA DE SER A CAMPEÃ DO PROTECIONISMO NA EUROPA, DE SER O PRINCIPAL OBSTÁCULO PARA AVANÇOS NA LIBERALIZAÇÃO AGRÍCOLA QUE PODERIA ABRIR ESPAÇO PARA UM ACORDO NA RODADA DOHA. COMO O SR. RESPONDE A ESSAS CRÍTICAS?
SARKOZY - Esta é uma crítica muito injusta: nenhuma outra zona comercial do mundo é tão aberta ao comércio internacional quanto a União Européia. A Europa sempre apoiou ativamente a conclusão da Rodada Doha, desde que esta seja a base para um acordo ambicioso e equilibrado. Quanto à questão agrícola, gostaria de lembrar que a última reforma da PAC [Política Agrícola Comum], em 2003, permitiu uma queda significativa dos principais incentivos europeus. As subvenções diminuíram fortemente; as reformas dos setores do leite e do açúcar possibilitaram a redução dos preços mínimos; a UE reduziu fortemente a utilização das compensações para exportação. A Europa gostaria que todos tivessem feito tantos esforços quanto ela.
FOLHA - COMO O SR. DEFINE O EIXO PRINCIPAL DE SUA VISITA AO BRASIL?
SARKOZY - O objetivo de minha visita ao Brasil é duplo: trata-se de dar corpo à parceria estratégica entre a União Européia e o Brasil que lançamos em julho de 2007. Para isso, espero que estabeleçamos objetivos concretos, ambiciosos e realistas em vários setores. É dentro desse espírito que assinaremos um plano de ação conjunto que dará destaque a certo número de prioridades: o aprofundamento de nosso diálogo político, o desenvolvimento de nossa cooperação nos grandes desafios mundiais, como ambiente, energia ou segurança alimentar, e a implementação de projetos concretos em matéria de inovação tecnológica, educação ou em outros países.
Mas dou uma grande importância também à etapa bilateral de minha visita. O presidente Lula e eu decidimos, por ocasião de nosso encontro na Guiana, em fevereiro, dar novo impulso às nossas relações. Para nós dois essa parceria deve ser global, ou seja, compreender áreas de cooperação tanto no setor civil quanto no de defesa; ela deve ser autêntica, quer dizer, basear-se em projetos concretos; ela também deve ser equilibrada, o que significa dizer que nossos respectivos países extrairão grandes vantagens. Mas a nossa parceria, acima de tudo, é coerente no sentido de que a adesão do Brasil ao Conselho de Segurança como membro permanente ou a um G8 ampliado, e nossa cooperação nos setores civil e de defesa bastante estratégicos formam um todo. Não se trata de uma relação de fornecedor a cliente; trata-se de uma relação entre parceiros, fundada no diálogo político e na transferência de experiência e tecnologia. Vários acordos muito importantes serão assinados na área do desenvolvimento sustentável, do ensino profissional, da defesa, do espaço etc.
FOLHA - A ELEIÇÃO FRANCESA DE 2007 FOI ACOMPANHADA AQUI COM O OLHAR TRADICIONAL: A DIREITA, REPRESENTADA POR SARKOZY, CONTRA A ESQUERDA, REPRESENTADA POR SÉGOLÈNE ROYAL. MAS SUA AÇÃO SURPREENDEU A MUITOS, NÃO SÓ POR CONVOCAR SOCIALISTAS PARA SEU GOVERNO COMO POR ADOTAR POSIÇÕES DIFICILMENTE ASSOCIÁVEIS À DIREITA. MUDOU SARKOZY? MUDOU O MUNDO?
SARKOZY - Já no dia seguinte à minha eleição decidi apelar para um governo de abertura, indo buscar talentos e competências bem além de minha família política. Eu não precisava dessa abertura, aritmeticamente falando, mas quis realizá-la porque meu projeto para a França é ambicioso e, quando se pretende empreender grandes reformas, é necessária uma grande maioria. A abertura também corresponde a uma convicção profunda: a de que o presidente deve ser o presidente de todos os franceses.
Isto colocaria em questão a existência de uma direita e uma esquerda? De forma alguma. Fui eleito com base em um programa de governo muito claro e as personalidades de esquerda que se uniram a mim fizeram-no conhecendo meu projeto e para colocá-lo em prática. É preciso saber dar provas de pragmatismo e ir buscar as boas idéias onde estiverem, mesmo que seja em outro país ou outra família política.”
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