Brasil recusou-se a “participar, em condições apropriadas e juntamente com os Estados Unidos e outras forças do hemisfério, de qualquer ação militar que a situação que se desenvolve em Cuba possa requerer”
Li ontem no jornal Folha de São Paulo o seguinte artigo de ALMINO AFFONSO, advogado, ex-deputado federal, ministro do Trabalho e da Previdência Social (governo João Goulart) e vice-governador do Estado de São Paulo (1983-85):
AS CARTAS DE KENNEDY E GOULART
Como vivi de perto esse episódio, como líder do PTB na Câmara, sinto-me no dever de aclarar o que por acaso ainda pareça obscuro”
Em reportagem desta Folha ("Em 62, EUA pediram apoio a Jango na crise dos mísseis em Cuba", 7/12), reportando-se aos arquivos do CPDOC, fica visto que o presidente Kennedy, em face dos riscos de uma agressão da URSS, valendo-se dos mísseis que instalara no Caribe, propusera ao Brasil uma ação conjunta para deter a audácia soviética, inclusive com a invasão de Cuba.
Ao referir-se às anotações a que tivera acesso, o jornalista constata que o presidente João Goulart se recusara a dar apoio à projetada intervenção militar; mas, ao mesmo tempo, deixou no ar uma ponderação: "Não se sabe se esta foi a resposta oficial do [governo] brasileiro".
Como vivi de perto esse episódio, na qualidade de líder do PTB na Câmara, sinto-me no dever de aclarar o que por acaso ainda pareça obscuro.
Com efeito, em carta confidencial, datada de 22/10/62, dirigida ao presidente Goulart, a proposição de Kennedy fora categórica: "Desejo também formular um convite ao senhor no sentido de que seus assessores militares discutam com os meus a possibilidade de participar, em condições apropriadas e juntamente com os Estados Unidos e outras forças do hemisfério, de qualquer ação militar que a situação que se desenvolve em Cuba possa requerer". A bem da verdade, menos do que um convite, a carta parecia uma determinação.
Ao responder ao presidente Kennedy, em reunião no Palácio da Alvorada, ao longo do dia 23/10/62, Goulart fixou posição contrária à invasão de Cuba. Por convocação dele, éramos poucos em torno da mesa: o deputado San Thiago Dantas, o procurador-geral da República, Evandro Lins e Silva, o chefe da Casa Militar, general Albino Silva, Antonio Balbino (que fora consultor-geral da República até bem pouco tempo) e eu próprio, como líder do PTB.
O presidente João Goulart recebera a carta de Kennedy na noite anterior, das mãos do embaixador Lincoln Gordon. A resposta de Goulart já estava esboçada em anotações escritas à mão e era fiel à linha política que o Brasil assumira na reunião dos chanceleres da OEA, realizada em Washington no começo de outubro.
Destaco assim que sua posição fora, desde o primeiro instante, de absoluto respeito aos princípios da autodeterminação dos povos e da não-ingerência nos negócios de cada país: "Sempre nos manifestamos contra a intervenção militar em Cuba, porque sempre reconhecemos a todos os países, sejam quais forem os seus regimes ou sistemas de governo, o direito de soberanamente se autodeterminarem".
Em outro tópico, invocando a posição pacífica que faz parte de nossas tradições, o presidente João Goulart condenara com firmeza a guerra "como instrumento capaz de resolver conflitos entre as nações". E, coerente com essa visão, inclusive se manifestava contrário a que Cuba descambasse para uma política armamentista: "Por todas essas razões, não aceitaríamos também como legítimo o armamento ofensivo de Cuba".
A análise da situação, ao longo de todo o dia, estendeu-se a respeito da Organização dos Estados Americanos, que vinha deixando de ser o órgão articulador da política latino americana, com a devida independência e altivez.
Ademais, fixada a posição categórica contra a intervenção militar em Cuba, foi acrescentado à carta que o Brasil oferecia seus serviços como eventual mediador entre os Estados Unidos e Cuba, na busca de uma saída que evitasse o conflito armado. Uma vez aceita a proposição brasileira por ambas as partes, a missão diplomática foi cumprida pelo general Albino Silva.
Coube ao deputado San Thiago Dantas escrever a carta a ser enviada ao presidente Kennedy. Digo pouco ao afirmar que, pela sua altanaria e precisão lógica, ela converteu-se num documento de maior grandeza na história da diplomacia brasileira.
Era de madrugada quando Raul Riff, secretário de Imprensa da Presidência da República, entregou ao embaixador dos Estados Unidos a resposta de Goulart a Kennedy, em viagem especial que fizera ao Rio.
Durante muito tempo, as cartas de Kennedy e Goulart ficaram perdidas nos arquivos oficiais. Tentei encontrá-las quando voltei do exílio, em 1977. Sem êxito.
Só anos depois, por intermédio do jornalista Guy de Almeida, então vice-governador de Brasília, junto ao secretário-geral do Ministério das Relações Exteriores, Paulo de Tarso Flecha de Lima, as referidas cartas vieram a lume. A essa época, eu tive o privilégio de publicá-las (pela primeira vez) no livro "Raízes do Golpe" (1988).
A despeito da significação dessas cartas, que revelam os bastidores da diplomacia num momento em que o mundo esteve na iminência de uma guerra atômica, elas continuam à margem da história contemporânea.
É hora de resgatá-las do silêncio, inclusive reconhecendo a grandeza do papel que o presidente João Goulart desempenhou naquele momento crucial.”
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