terça-feira, 27 de agosto de 2013

A RELAÇÃO ARGENTINA-BRASIL E OS CAMINHOS DA INTEGRAÇÃO

 
Aldo Ferrer, foi ministro da Economia da Argentina nos anos 1970

 Por Kjeld Jakobsen, consultor de Relações Internacionais e colunista de "Teoria e Debate"

"Em entrevista para a revista 'Teoria e Debate', Aldo Ferrer, professor emérito na Universidade de Buenos Aires e um dos economistas argentinos mais ativos a denunciar os efeitos das políticas neoliberais, impulsionadas pelo 'Consenso de Washington' sobre os países periféricos, afirma que o Brasil deve ver o desenvolvimento da Argentina como parte de seu desenvolvimento, e vice-versa. "Com essa visão compartilhada, as oportunidades para ambos são infinitas em infraestrutura, indústria, ciência, tecnologia".

Para o economista, a política brasileira é funcional ao desenvolvimento argentino e traça a concepção fundamental da integração.

Acompanhe a entrevista:

--Teoria e Debate: Do ponto de vista argentino, como seria o ideal de integração sul-americana?

 Aldo Ferrer: A integração entre Argentina e Brasil deve ter como objetivo promover o desenvolvimento conjunto, industrial e tecnológico. Que o Brasil veja a industrialização argentina como a industrialização brasileira. Ou seja, que o Brasil veja o desenvolvimento da Argentina como parte de seu desenvolvimento, e vice-versa. Se tivermos essa visão compartilhada, as oportunidades são infinitas em infraestrutura, indústria, ciência, tecnologia.

Em alguma medida, essa concepção está presente, diferentemente do passado, quando no período neoliberal a integração passava pelo livre jogo das forças do mercado. As economias baixavam a proteção tarifária, geravam eventualmente um mercado comum, e as regras do mercado determinavam os acontecimentos. Esse tipo de integração entre países com assimetrias de desenvolvimento aprofunda as desigualdades. É o que está ocorrendo na Europa; estão aplicando as mesmas regras para Grécia e Alemanha – uma catástrofe.

Essa é a visão neoliberal, que acabou muito mal, como na Argentina. De outro lado, a integração também não prosperou. Quando a Argentina mudou sua política econômica, após a crise de 2001-2002, começou novamente a se industrializar, reapareceu o Estado nacional com capacidade de fazer políticas públicas, instalou-se uma nova visão que coincide com o que está ocorrendo no Brasil, uma política ativa e altiva. A política brasileira que privilegia a autonomia do país frente aos centros de poder internacional e é solidária com o desenvolvimento do espaço sul-americano, é funcional ao desenvolvimento argentino e traça a concepção fundamental da integração.

--E o senhor acha que o Brasil está cumprindo esse papel?

  Há claramente uma intenção política de cumpri-lo. A mensagem do governo do presidente Lula, dos porta-vozes do governo da presidenta Dilma – o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim e o atual, Antonio Patriota –, de Samuel Pinheiro Guimarães, todos expressam a opinião do momento político brasileiro, compartilham essa visão.

--De fato, a partir do governo Lula, uma das doutrinas da política externa é justamente considerar a Argentina como prioridade. Talvez isso já tenha sido dito antes, mas me parece que, na prática, o tema foi levado mais a sério a partir de 2003. O mesmo acontece na Argentina?

  A posição do governo argentino é muito favorável à integração nos termos que mencionei. Agora, é preciso que isso seja posto em prática.

Claro, até porque às vezes há conflitos, principalmente na área comercial.
 
 Isso é muito interessante. Durante o período neoliberal, houve uma divisão na qual a Argentina vendia quase exclusivamente produtos primários e o Brasil vendia, sobretudo, bens industrializados. A Argentina se desindustrializou e passou a exportar matéria-prima. Isso fez com que se criasse uma relação bilateral do tipo centro-periferia. Quando a Argentina muda sua política, a relação bilateral também tem de mudar, e aparecem os conflitos: eletrodomésticos, calçados... Mas, na minha opinião, a postura brasileira foi muito compreensiva. Houve reclamações comerciais, mas no nível político os problemas se resolveram com espírito solidário e satisfatoriamente.

--E, nesse processo de integração, qual é o papel de países como Uruguai, Paraguai, o Mercosul original?

 Recentemente, Marco Aurélio (Garcia) disse que a integração da América do Sul é mais do que a relação entre Argentina e Brasil, mas sem essa relação é difícil pensar as relações sul-americanas. Esse é o núcleo da integração sul-americana, e essa é a nossa responsabilidade. Acho que os dois países estão em dívida com Uruguai, com Paraguai. Não fomos suficientemente solidários com eles para lhes dar oportunidades de participar no desenvolvimento industrial, investimento, infraestrutura. Acredito que foram tomadas algumas medidas, que há um fundo regional, mas nossos países têm problemas internos tão sérios que não é possível pensar em programas de ajuda externa relevantes. Aqui não é a Europa. A Alemanha tem um imenso fundo agrícola, por exemplo. No entanto, como estamos vendo, esse esquema não funcionou. Enfim, cifras que não são decisivas para Argentina e Brasil podem ser fundamentais para Paraguai e Uruguai em termos de infraestrutura, desenvolvimento industrial, apoio tecnológico...

--Até agora falamos da integração do ponto de vista econômico. No que mais essa integração pode caminhar?

 Há a dimensão política, pois por trás dessa concepção de integração há o conceito de desenvolvimento soberano de nossos países para estabelecermos uma relação simétrica, não subordinada aos Estados Unidos e à Europa. É uma concepção nacional-regional de desenvolvimento. Trata-se de uma questão política de posicionamento no sistema internacional, que está mudando muito rapidamente. A emergência da China, por exemplo, tem criado uma nova realidade e representa um desafio maior do que a concorrência norte-americana ou europeia. Tanto a Argentina quanto o Brasil correm o risco de virar periferia da China, de estabelecer com esse país a relação que tivemos com a Inglaterra no século 19.

Temos de aproveitar a oportunidade que nos oferece a extraordinária ampliação do mercado mundial, a nova geografia da economia mundial, para valorizar os recursos naturais, mas levando à frente nosso desenvolvimento industrial. Temos de construir um relacionamento virtuoso com a China, um país de enorme dinamismo, que procura matéria-prima, quer vender manufaturas, quando investe fora quer que o componente seja chinês, que tenha pouco componente local. Mas, ao mesmo tempo, acredito que a sabedoria chinesa entenda que nossos países querem outro tipo de situação. Dependerá de nós, não dos chineses.

Enquanto a Europa e os Estados Unidos têm poder financeiro baseado no sistema privado, na China o poder financeiro extraordinário é do Estado nacional. Isso permite aos chineses se posicionar no exterior com poder de negociação, tanto como mercado de compra, quanto financiador do que eles querem vender (risos). Então, temos de fortalecer nossa capacidade financeira. O Brasil possui um banco extraordinário e, em 1970, quando fui ministro de Economia da Argentina, criei o Banco Nacional de Desenvolvimento, o equivalente ao BNDES. Existia um velho banco industrial e ampliamos suas funções, criamos uma série de fundos, mas com a onda neoliberal o banco deixou de existir. Já o BNDES do Brasil é um banco extraordinário.

--O BNDES foi preservado.

  O Brasil, nos períodos de influência neoliberal, não abandonou determinados eixos do poder nacional, como a Embraer e a Petrobras, por exemplo. A Argentina, no entanto, vendeu a YPF, empresa de exploração, refino e venda do petróleo e derivados, fechou seu banco de desenvolvimento. O Brasil não assinou nenhum convênio bilateral de garantia de investimento, nem aderiu ao "Centro Internacional para Arbitragem de Disputas sobre Investimentos" (CIADI). A Argentina, por sua vez, assinou sessenta convênios e tem no CIADI aproximadamente trinta processos judiciais. Já reconstruiu algumas coisas, mas não no setor financeiro, que ainda não conta com uma banca de desenvolvimento forte.

--E qual é a situação da economia argentina hoje? Existe uma retomada da industrialização?

 Parcialmente, é uma estrutura muito desequilibrada. Na indústria automotiva, por exemplo, há 30 anos o componente importado do veículo era de 80%, agora é 30%, 40%. Já o componente importado da produção manufatureira argentina aumentou, o que significa que, quando aumenta a produção industrial, aumentam as importações, mas não há exportações industriais.

Ocorre que, havendo aumento das importações sem exportação industrial, dependemos da sazonalidade da soja (no Hemisfério Sul, a colheita ocorre na entressafra norte-americana, ou seja os Estados Unidos são os fornecedores preferenciais). A diferença é compensada pelos produtos primários – o velho modelo, que não pode ser mantido. Uma parte importante do déficit externo, ou do déficit de manufaturas, é das filiais de empresas transnacionais, que importam insumos, transferem os lucros para o exterior e não exportam manufaturas. Então, o déficit da operação das filiais é de 60% do déficit do comércio de manufaturas na Argentina. Assim, temos desequilíbrios estruturais muito graves. Há recuperação em alguns setores, como de eletrodomésticos, calçados. A integração tem de servir para equilibrar essa diferença, que também ocorre no Brasil.

E, aí, cria-se outro problema, que é o câmbio. Nós nos tornamos mais dependentes, ou seja, temos maior dificuldade para controlar o câmbio, porque a desvalorização favorece as exportações e, ao mesmo tempo, torna mais caro o componente importado. Então, surgem dificuldades na produção, os preços dos produtos sobem e aparece a inflação.

--Podemos afirmar que a concentração de renda na Argentina tende a ser mais fácil de equacionar que no Brasil?

 Historicamente, sim. A Argentina tinha uma situação relativamente melhor que a outros países da América Latina, mas no período neoliberal retrocedeu bastante. De certa forma vem se recuperando, porque melhorou o emprego e há programas semelhantes ao "Bolsa Família", que lá recebe o nome de "Asignación Universal por Hijo", para as famílias cujos filhos estão na escola. Isso tem tido alguns efeitos sociais interessantes. Mas a longo prazo a solução é emprego, industrialização, aumento da produtividade, capacitação da força de trabalho, que são questões ligadas ao desenvolvimento.

Em 2009, houve a crise internacional. No Brasil, foram tomadas medidas anticíclicas e a crise foi rapidamente superada. Hoje, voltamos a sentir seus efeitos; o crescimento do ano passado foi baixo e a perspectiva para este ano não é muito melhor...

 Os problemas que temos nos dois países não são consequência da crise internacional, porque contamos com certa autonomia financeira. A Argentina, por exemplo, se autofinancia, não precisa de crédito externo, e o Brasil tem muitas reservas. Creio que a causa dos problemas é basicamente de desajustes da política econômica interna. Os governos sempre tentam justificar problemas internos como consequência dos externos, mas eu não acredito nisso. Na Argentina, por exemplo, o argumento oficial é esse. Se houvesse redução no preço das commodities talvez nos afetasse. Mas isso não tem ocorrido. Houve ajuste de preços, mas não em produtos agrícolas, a soja tem preço muito bom.

--Também em seu país têm ocorrido muitas manifestações, a população tem saído às ruas para protestar?

  Não como tem acontecido no Brasil, manifestações massivas e espontâneas, mas de setores, grupos de duzentas, trezentas pessoas, que podem fechar uma rua ou estrada, por exemplo. Os caminhoneiros, sindicalistas de grande capacidade de pressão, fizeram uma greve geral e estão pedindo que tirem o imposto de renda dos salários. Ou seja, o que vemos na Argentina são episódios de perturbação, focalizados. O mais grave foi o conflito com o campo quatro anos atrás, quando um grupo de produtores interrompeu estradas, desencadeando muitos problemas.

Na Argentina, os setores de apoio e de oposição ao governo são mais claros e definidos. Então, às vezes, sai um grupo em protesto contra o governo e depois sai outro em apoio.

Há pontos na pauta política de muito conflito, como a "lei dos meios de comunicação", que afeta o grande "Grupo Clarín", que tem de vender muitos dos seus imóveis de canais de televisão... A lei, aprovada há quatro anos, ainda não foi aplicada, porque e empresa recorreu, alegando que é inconstitucional. O processo chegou ao Supremo Tribunal de Justiça, que terá de resolver o conflito de alguma maneira. E há tensões entre o Poder Judicial e o Poder Executivo. Na realidade, a política é tensionada por alguns meios de comunicação de oposição, que oferecem um quadro assustador no qual tudo está errado, tudo é corrupção.

O governo contesta com todos os meios que possui, mas tudo pode ser resolvido com a democracia. Teremos eleições, haverá um novo governo. A Argentina, entre 1930 e 1983, teve seis golpes de Estado: em 1930, 1943, 1955, 1962, 1966 e, o pior de todos, em 1976. Nessa época, aparece a guerrilha, o "movimento Montoneros", os grupos que ameaçavam a segurança, provocando a queda do governo e a instalação do terrorismo de Estado. No século passado, a Argentina teve o recorde mundial de instabilidade. O custo foi alto, mas esse tipo de coisa já não acontece. Todos os conflitos serão resolvidos no marco da Constituição, e esse e um avanço extraordinário.

--E quais são as perspectivas para as eleições do próximo ano?

 A oposição está muito dispersa. Nas próximas eleições, serão três candidaturas peronistas: o governo, um novo grupo próximo ao governo que tem se diferenciado e o peronismo conservador. O peronismo é um fenômeno muito particular, abrange todo o espectro político, da esquerda popular até a direita. Temos também o peronismo populista das oligarquias locais nas províncias, por exemplo, que invocam Perón, mas são ultraconservadores. O radicalismo (União Cívica Radical, UCR), outra força historicamente importante, também tem essa característica de amplo espectro político. Mas o "peronismo" tem a característica de abranger os extremos da violência; encontramos no mesmo partido o "Montoneros" e também a "Triple A" (Aliança Anticomunista Argentina).

--Quem é o candidato do governo, uma vez que Cristina, em princípio, não pode se candidatar novamente?

  A presidenta tem dito que não quer modificar a Constituição nem aspira se reeleger. Há um grupo dentro do oficialismo que afirma que ela tem de ficar, mas não é previsível. O governo tem o problema de quem nomear como sucessor de Cristina. A única figura forte dessa corrente do peronismo oficial é a presidenta."

FONTE: reportagem de Kjeld Jakobsen, consultor de Relações Internacionais e colunista de "Teoria e Debate". Transcrito no portal "Vermelho"    (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=221987&id_secao=7).

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