terça-feira, 11 de junho de 2013

BRASIL, MERCOSUL E A MORAL SELETIVA NOS NEGÓCIOS COM ISRAEL

[A invasão e roubo impunes dos territórios da Palestina por Israel

“A relação comercial atual do MERCOSUL com Israel viola o direito comercial, os direitos humanos, os estatutos e as práticas do bloco sul-americano, compromissos políticos do Brasil com o povo palestino e tem prejudicado as relações com outros parceiros comerciais. Além de tudo isso, Israel viola as disposições do próprio “Tratado de Livre Comércio”, exportando ilegalmente os produtos dos “assentamentos” [i.é., das áreas palestinas invadidas]. O que é preciso para simplesmente tratar Israel como se trataria qualquer outro país?

Por Maren Mantovani 


Uma qualidade essencial aos ativistas Palestinos é o agudo senso de ironia. Para se ter uma ideia, as políticas recomendadas pela cartilha da “Organização Mundial do Comércio” (OMC) são denunciadas por movimentos sociais de todo o mundo por conta dos ataques às soberanias política, econômica, cultural e, até mesmo, alimentar dos povos. A Palestina é, possivelmente, o único lugar onde a situação é tão calamitosa que a implementação das normas da OMC seria um progresso. No entanto, na Palestina ocupada, até mesmo essas regras são desrespeitadas.

Após a bem-sucedida campanha do Brasil para nomear Roberto Azevedo como diretor-geral da OMC, surge a oportunidade para a discussão das relações comerciais do mundo – e do Brasil - com Israel.

Israel é, constantemente, isentado do cumprimento de leis e regulamentos acordados internacionalmente. Por essa razão, os países que toleram essa situação contribuem diretamente para a continuidade das graves violações dos mais elementares princípios de direitos humanos, bem como das normas de direito internacional na Palestina.

ISRAEL - A EXCEÇÃO

Um dos pilares básicos das normas comerciais da OMC são as “regras de origem”. Embora os detalhes dos termos sigam em debate, há um consenso fundamental entre os países participantes: o de que o regime de comércio mundial entraria em colapso caso ocorresse impunidade para Estados que comercializam produtos oriundos de outros países como se fossem seus.

Apesar desse entendimento, existe uma única exceção permitida: a exportação israelense de produtos total ou parcialmente produzidos nos assentamentos ilegalmente construídos em território Palestino ocupado, como "Made in Israel".

Esses produtos entram no mercado brasileiro livres de imposto no âmbito do “Tratado de Livre Comércio” (TLC) Mercosul-Israel, o qual foi ratificado pelo Brasil em 2010. Tal medida entrou em choque com a
recomendação da comissão parlamentar para que a ratificação do TLC fosse suspensa até que um Estado palestino, demarcado [pelo menos] dentro das fronteiras de 1967, fosse criado. Para apaziguar os protestos, no decreto de ratificação do TLC, o Brasil assinalou uma obviedade - a exclusão de produtos oriundos dos assentamentos ilegais do tratado. Contudo, nem mesmo essa exclusão acontece. Ainda que até 30% da produção israelense venha dos “assentamentos”, as autoridades aduaneiras não encontraram qualquer "dúvida razoável" para investigar e, com isso, o tratado é violado diariamente por autoridades brasileiras, do MERCOSUL e de Israel.



[As terras da Palestina invadidas e roubadas por Israel estão assinaladas em verde. O último mapa à direita é de 1999. Nesses 14 anos (1999-2013), a invasão e apropriação agravaram-se ainda mais, sempre com a complacência internacional e o forte respaldo dos EUA . A referida fronteira de 1967 está representada no 3º mapa da esquerda para a direita].


Além da discussão técnica no âmbito comercial, o que realmente precisa ser abordado é o fato de que o atual comportamento comercial do Brasil contribui para as graves violações dos direitos humanos e das normas do direito internacional na Palestina.

FINANCIANDO A OCUPAÇÃO ISRAELENSE

Israel não seria capaz de continuar com suas onerosas políticas de ocupação, colonização e apartheid na Palestina, se essas não fossem economicamente viáveis. Os assentamentos e o muro levantado ilegalmente ao redor das aldeias palestinas, para confiscar suas terras, não teriam sido construídos e mantidos sem as empresas que fazem esse trabalho. Sob a perspectiva do direito internacional, todos aqueles que contribuem para a viabilidade financeira e material dessas políticas israelenses estão envolvidos em uma situação de cumplicidade.



                    [Muro de proteção da terras palestinas roubadas]. 

Para evitar isso, os Estados estão legalmente obrigados a não dar reconhecimento, ajuda ou assistência a graves violações de cláusulas pétreas do direito internacional ou à manutenção de situações criadas por essas violações. O comércio com produtos dos assentamentos é, portanto, ilegal e deveria ser proibido. Também os contratos e relações comerciais com empresas envolvidas nas violações da lei internacional por parte de Israel implicam riscos legais.

Apesar disso, a empresa “
Ahava” vende seus cosméticos em todo Brasil, embora sua fábrica esteja localizada em um “assentamento” ilegal na Cisjordânia e explore ilegalmente os recursos naturais do território ocupado. A campanha global "Beleza Roubada" é ativa em dezenas de países ao redor do mundo e, através de protestos e piquetes nas lojas, já fez avanços significativos para interromper as vendas desses produtos. A “Sodastream”, produzindo máquinas de refrigerante no “assentamento” ilegal de Maale Adumim na Cisjordânia, já em 2010 foi proibida pelo Tribunal Europeu de exportar seus produtos como "Made in Israel". No entanto, começou a exportá-los para o Brasil logo após a ratificação do TLC. “Mekorot”, a companhia de água israelense, um agente vital nas políticas de roubo sistemático de água palestina para abastecimento dos “assentamentos”, tem contratos com a SABESP em São Paulo e CAESB em Brasília. Por fim, a empresa israelense “Elbit”, infame mundialmente por seu papel na construção do muro, acaba de ganhar importante contrato com o governo do Rio Grande do Sul.

O “Tratado de Livre Comércio” com Israel agrava a situação. Mas, fora a necessidade urgente de o MERCOSUL suspender o TLC por falta de um mecanismo eficiente de exclusão das mercadorias provenientes dos assentamentos, esperamos que o Brasil e seus vizinhos concordem que esse acordo precisa ser suspenso por possuir um problema estrutural: não tem emenda por esse TLC que o alinha com o dever do Brasil de não-assistência às violacões do direito internacional de Israel. Não se pode oferecer regalias comerciais a um país que, sistematicamente, comete crimes de guerra, implementa políticas de colonização e apartheid, ignora o direito à autodeterminação de um povo inteiro e o direito de retorno dos refugiados expulsos [de suas terras seculares], os quais compõem a maioria dos palestinos.


A DIPLOMACIA SELETIVA

De acordo com o direito internacional, além do dever de não reconhecimento e não-assistência, os Estados têm a obrigação de promulgar medidas eficazes, incluindo sanções, para impedir violações de normas imperativas de direito internacional. No caso das Malvinas, o MERCOSUL já está implementando suas obrigações contra a colonização ilegal das ilhas pela Grã-Bretanha, proibindo aos navios que hasteiam a bandeira ilegal das "Falkland" de atracar em seus portos. Da mesma forma, não se concede qualquer assistência a navios que atuem na exploração ilegal dos recursos naturais das Ilhas.

Quando o Paraguai estava sofrendo um "golpe branco", o Brasil liderou a decisão do MERCOSUL de suspender o país do próprio bloco comercial.

Por que, então, quando a Palestina está em causa, os Estados membros do MERCOSUL deixam de lado os princípios norteadores do bloco comercial, que inerentemente conectam os acordos comerciais e o desenvolvimento, à promoção dos direitos humanos, das liberdades fundamentais e da democracia?

O Brasil ainda assumiu uma série de compromissos políticos com o povo palestino e a comunidade internacional, aos quais estamos profundamente gratos, mas que, para que tenham verdadeiro efeito sobre as vidas palestinas e a justiça, precisam ter algumas consequências básicas. O papel ativo que o Brasil tem desempenhado na ONU por conta da campanha mundial para o reconhecimento do Estado palestino nas fronteiras de 1967 deveria implicar o seu compromisso de não reconhecer ou apoiar a sustentabilidade econômica à política de "colonização e limpeza étnica" [sic], praticada por Israel nos territórios ocupados após a invasão dessas fronteiras. Além disso, em março deste ano, o Brasil votou e apoiou ativamente a aprovação da resolução A/HRC/22/L.45 do “Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas” sobre o impacto dos empreendimentos de colonização israelense, o que exige de todos os Estados membros da ONU o respeito às obrigações de não-reconhecimento e de não-assistência ao empreendimento dos assentamentos.

A LÓGICA ANTIECONOMICISTA

Tais obrigações políticas, morais e legais são frequentemente deixadas de lado em nome do argumento de que "direitos humanos não são critérios quando se elaboram estratégias de desenvolvimento". De acordo com esse discurso, assumir compromisso com os direitos humanos é considerado contraproducente ao “interesse coletivo”, um “entrave” ao progresso, uma vez que tais princípios não se aplicariam à realidade econômica. De alguma maneira, [alguns pensam que] "a coletividade prospera melhor uma vez que seus direitos mais básicos são desconsiderados". Essa lógica faz com que, até mesmo, as regras da OMC sejam violadas e aplicadas de modo seletivo nas relações internacionais.

Tal entendimento é profundamente questionável do ponto de vista da ética. Ainda assim, se aplicarmos uma análise puramente economicista, podemos observar o quão ilógica é a assinatura do TLC para os interesses do MERCOSUL.

As conversações do MERCOSUL com o “Conselho de Cooperação do Golfo” (CCG) para o estabelecimento de um TLC sofreram inesperado congelamento logo após a assinatura do acordo com Israel. Quem participou das negociações relata que isso tem relação direta com a opção por Israel. Perdeu-se um mercado de exportação multinacional, que possui volume global de comércio 15 vezes maior que o israelense e que, embora não desfrute das mesmas isenções tributárias, tem um comércio com o Brasil 8 vezes maior do que Israel. Por outro lado, o saldo comercial nas transações econômicas entre Brasil e Estado de Israel encontra-se duas vezes mais negativo do que já o era em 2009.

Em suma, a relação comercial atual com Israel viola o direito comercial, os direitos humanos, os estatutos e as práticas do MERCOSUL, compromissos políticos do Brasil com o povo palestino, e tem prejudicado as relações com outros parceiros comerciais. Além de tudo isso, Israel viola as disposições do próprio TLC a cada dia, exportando ilegalmente os produtos dos “assentamentos”.

A questão final é evidente: o que é preciso para simplesmente tratar Israel como se trataria qualquer outro país? Qual justificativa ética ou econômica impediria a imposição de sanções comerciais, a proibição dos produtos dos “assentamentos” ilegais, bem como a suspensão dos negócios com empresas envolvidas com a ocupação e colonização israelense na Palestina?

O que impede a interrupção do “Tratado de Livre Comércio” com Israel até que esse país passe a respeitar o direito internacional?”


FONTE: escrito por Maren Mantovani, coordenadora de relações internacionais para 'Stop the Wall', a campanha palestina contra o "Muro de apartheid" que Israel está construindo na Palestina. Transcrito no site “Carta Maior”   (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22138). [Imagens obtidas no Google e trechos entre colchetes ou em azul adicionados por este blog ‘democracia&política’].

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