terça-feira, 26 de agosto de 2008

OS DIREITISTAS ARGENTINOS

Li no site “Vermelho” o muito bom artigo de Gilson Caroni Filho, postado pelo site Carta Maior. O autor é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.

A DIREITA EM TRANSE NA ARGENTINA

“Depois de uma crise que durou quatro meses, agremiações ruralistas voltam a ameaçar o governo de Cristina Kirchner com “tratoraços" e promessas de locaute se suas reivindicações não forem atendidas. Filme velho, que não faz jus à filmografia saborosa de um Fernando Solanas.”

“Eduardo Buzzi, presidente da Federação Agrária Argentina, é categórico ao afirmar que "se não houver soluções para nossas reclamações, vamos declarar antes do fim de agosto a volta do protesto, que seria um locaute agropecuário ou a não comercialização de grãos". O interessante é que parece haver um lapso no cálculo político de Buzzi que apoiou o ex-presidente Néstor Kirchner e, até bem pouco tempo, era um entusiasta da sua sucessora.

Se a chamada “Mesa de Enlace" reúne atores rurais díspares em interesses, a ação uníssona de seus integrantes deve servir de alerta aos que se preocupam com a estabilidade institucional do país vizinho. Pequenos produtores unidos ao agronegócio buscam diminuir o espaço de manobra do governo argentino, e o custo político resultante é por demais conhecido para que o ignoremos.

Mas o erro de cálculo a que nos referimos acima reside em não considerar que baixa constitucionalidade efetiva nunca inibiu a participação política das forças progressistas portenhas. Pelo contrário, como tem ocorrido na maioria dos países da América Latina, o custo do fracasso de mobilizações pelo alargamento de direitos e manutenção do regime democrático sofreu uma admirável redução. A democracia no continente é, cada vez mais, uma aposta correta.

Se as velhas oligarquias conseguem mobilizar um considerável número de pessoas, o bloco democrático, por outro lado, tem levado multidões às ruas. Seria interessante relembrar fatos recentes. Momentos que demonstram a capacidade de resistência sendo forjada no correr do próprio embate. E haverá melhor cenário para isso do que a própria Argentina no final de 2001?

Ante uma dívida pública de 146 bilhões de dólares, sucessivos ajustes recessivos para manter uma fantasia cambial, funcionalismo público e inativos confiscados em salários e proventos, o povo argentino reinventou a política. Derrubou o czar dos financistas de prontidão e levou à renúncia dois presidentes. Houve quem visse com preocupação o que deveria ser festejado como esperança. Historicamente, mudanças significativas se fazem por forças não mais controláveis por uma institucionalidade que se torna tão arcaica quanto disfuncional.

Tal como nas linhas do realismo mágico, tempo e espaço entraram em suspensão. As mães da Praça de Maio, os curtidos pela hiperinflação do governo Alfonsin e os desempregados pelos 43 meses de recessão deram-se os braços. Como a dizer que na história argentina tudo tem conseqüência e sua tradição não comporta pontos finais ou obediências devidas. Não foi, como apregoou a análise apressada, ato de desespero. Foi, antes, manifestação de soberania popular.

Industrializada a partir de um pujante setor agro-exportador, forjada politicamente num outrora sólido sistema partidário de altíssima capilaridade, a Argentina, àquela época, demonstrou que a história pode não ser contínua, mas é cumulativa, e forma o caráter de uma nação.

Relembrou por que Frondizi e Illia deixaram inconclusos seus governos. Por que se esgotou a experiência golpista de Ongania. Redesenhou a origem e o ocaso da tragicidade peronista. E pedagogicamente mostrou o quão sangrenta teve de ser a ditadura nos anos 1970 para se sobrepor a um povo que não existe para ter um papel ancilar.

Sem uma liderança orgânica ou mesmo um projeto alternativo, os últimos dias de 2001 foram um “grande não”. Ao monitoramento externo e às razões das finanças que jogam no desemprego quase 20% da população economicamente ativa. Não aos fundamentalismos do Consenso de Washington. Não à geléia disforme do Justicialismo, da UCR e da envergonhada Frepaso. Longe estávamos da barbárie. Assistíamos a uma antiga lição: a política também se faz fora dos marcos institucionais estabelecidos. Com ou sem estado de sítio em seu intercurso.

Poucos analistas apareceram para constatar que, naqueles dias, o povo de Seattle se deslocou para terras portenhas. Faltaram filólogos de boa-fé para explicar que moratória não tinha o sentido pejorativo de calote? Que o ingresso das mães da Praça de Maio na Casa Rosada era o ajuste de contas de uma nação com sua história? Que o cerco a um Congresso subalterno é reapropriação da cidadania parcialmente delegada?

Era o fim da hegemonia neoliberal na região. Já tínhamos Chávez antecipando a chegada de uma nova geração de Estadistas. Em pouco tempo subiriam à ribalta Lula, Kirchner, Morales, Correa, Vásquez, Ortega e, mais recentemente, Lugo. Cada um expressando uma correlação de forças distinta, uma especificidade intransferível, mas todos significando inequívoca demonstração de que a história redesenhada não admitiria retrocessos. É isso que atordoa a direita e lhe dá contornos patéticos. Já não há platéia suficiente para aplaudir seus antigos dramas. O transe é rico e insustentável.”

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