Por Wanderley Guilherme dos Santos, doutor em Ciência Política pela Stanford University (EUA)
“Não enxergo qualquer efeito pedagógico nesse julgamento e não desejo em hipótese alguma que se repita em outros processos futuros”.
“Ao bem afamado Péricles, o ateniense, é atribuída a opinião de que, embora sendo certo que nem todos têm sabedoria para governar, a capacidade de julgar um governo em particular é universal. A observação parece valer com razoável generalidade. Por exemplo: nem por faltar um diploma em medicina está um adoentado impedido de avaliar a competência do profissional que o assiste. Assim, ainda que não portador de títulos ou conhecimentos para ocupar assento no Supremo Tribunal Federal, tenho como direito constitucional e recomendação de um clássico grego inteira liberdade para opinar sobre a Ação Penal 470.
Posso dispensar a cautela de não me indispor com aquele colegiado, pois não tenho licença para advogar oficialmente ou não a causa de quem quer que seja. E contrariando desde logo o juízo de algumas pessoas de bem, não enxergo qualquer efeito pedagógico nesse julgamento e não desejo em hipótese alguma que se repita em outros processos. Falacioso em seu início, enredou os ministros em pencas de distingos argumentativos e notória fabricação de aleijados fundamentos jurídicos. Não menciono escandalosos equívocos de análise com que a vaidade de alguns e a impunidade de todos sacramentaram, pelo silêncio, o falso transformado em verdadeiro por conluio majoritário. Vou ao que me parece essencial.
A premissa maior da denúncia postulava a existência de "um plano para a perpetuação no poder" arquitetado por três ou quatro importantes personagens do Partido dos Trabalhadores. Até aí nada, pois é aspiração absolutamente legítima de qualquer partido em uma ordem democrática. Não obstante, é também mais do que conhecido que o realismo político recomenda, antes de tudo, a busca da vitória na próxima eleição. Não existe a possibilidade logicamente legítima de extrair de uma competição singular, exceto por confissão dos envolvidos, a meta de perpetuação no poder de forma ilegal ou criminosa. Pois o Procurador-Geral da República pressupôs que havia um plano transcendente à próxima eleição, a ser executado mediante meios ilícitos...
A normal "aspiração de continuidade" foi denunciada como "criminosa", denúncia a ser comprovada no decorrer do julgamento. E aí ocorreu essencial subversão na ordem das provas. Ao contrário de cada conjunto parcial de evidências apontar para a solidez da premissa, era essa que atribuía a frágeis indícios e bisbilhotices levianas uma contundência e cristalinidade que não possuíam. Todos os ministros engoliram a pílula da premissa e passaram a discutir, às vezes pateticamente, a extensão de seus efeitos. Dizer que a mídia reacionária ajudou a criar a confusão, que, sim, o fez, não isenta nenhum dos ministros da "facilidade" com que caíram na armadilha arquitetada pelo Procurador-Geral e pelo ministro relator Joaquim Barbosa.
Era patético, repito, o espetáculo em que cada ministro procurava nos textos legais quer a inocência, quer a culpabilidade dos acusados. Em momentos, fatos que eram apresentados por um ministro como tendo certa significação, derivada da premissa, e por isso condenava o acusado pelo crime supostamente cometido, os mesmos fatos eram apresentados como significando o oposto e, todavia, servindo de comprovação da culpabilidade do acusado. Exemplo: a ministra Carmem Lucia entendeu que o fato de a mulher de João Paulo Cunha ter ido descontar ou receber um cheque em gerência bancária no centro de Brasília comprovava a tranquilidade com que os acusados cumpriam atos criminosos à luz do dia, desafiadoramente. Já a ministra Rosa Weber interpretou o mesmo fato como "tentativa de esconder uma ação ilegal" e, portanto, João Paulo Cunha, seu marido, era culpado... Uma ação perfeitamente legal, note-se, o desconto de um cheque, sofreu dupla operação plástica: uma transformou-o em deboche à opinião pública, outra o encapotou como um pioneiro ato ‘black bloc’. Dessas interpretações contraditórias, seguiu-se a mesma conclusão condenatória, pela intermediação da premissa maior, segundo a qual qualquer ato dos indiciados estava associado àquele desígnio criminoso.
Estando os acusados condenados conforme tal rito subversivo, o julgamento de outras acusações (sendo o julgamento “fatiado” como bem arquitetou o relator Joaquim Barbosa, enfiando-o aos gritos pela goela de nove dos 11 ministros) se iniciava assim: tendo ficado provado que o réu cometeu tal e tal crime, lá se ia nova acusação como se se tratasse de um reincidente no mundo do crime em momentos diferentes no tempo. E mais, como se a condenação já estabelecida houvesse confirmado a veracidade da premissa maior sobre a existência de um "plano político maligno". Pois assim foi até o fim: a premissa caucionando indícios frágeis – e até mesmo a total ausência de indícios como na fala da ministra Rosa Weber explicando que “aceitava a culpabilidade de José Dirceu justamente pela inexistência de provas” – e os indícios frágeis, convertidos em condenações, emprestando solidez a uma estapafúrdia premissa.
Foi igualmente lamentável o espetáculo da “dosimetria”. Como calcular penas segundo a extensão e intensidade do agravo, se a existência do agravo pendia de farrapos de indícios? E como calcular se o que sustentava os indícios era uma conjetura dialeticamente tornada plausível por esses farrapos e para a qual não há pena explícita consignada?
Todos os ilícitos comprovados, e vários o foram, se esclarecem e adquirem sentido terreno quando se aceita o crime confesso de criação e utilização de “caixa dois”.
Essa outra acusação foi desvirtuada pela mídia e pelos ressentidos de derrotas eleitorais, apresentando-a como tentativa de inocentar militantes políticos.
Notoriamente, buscou-se punir de qualquer modo os principais nomes do Partido dos Trabalhadores. A seguir, sucederam-se os contorcionismos para a montagem de um roteiro em que se busca provar o inexistente.
Não há nada a copiar neste julgamento de exceção – a Ação Penal 470."
FONTE: escrito por Wanderley Guilherme dos Santos. Segundo o “Wikipedia”, o autor nasceu no Rio de Janeiro em 13 de outubro de 1935. É cientista político, autor de vários livros e artigos na área de Ciências Sociais. Notabilizou-se a partir do texto "Quem Vai Dar o Golpe no Brasil" - que prenunciou o golpe de Estado e a possível derrubada do presidente Goulart em 1964 e se tornou referência bibliográfica nos meios acadêmicos. Graduou-se em filosofia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 1958, tendo concluído seu Doutorado em Ciência Política na Stanford University em 1979, com a tese “Impass and Crisis in Brazilian Politics”. Fez seu Pós-Doutorado em Teoria Antropológica na, UFRJ, em 1986. É professor aposentado de teoria política da UFRJ, sendo professor e fundador do “Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro” – IUPERJ. Artigo publicado no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Acao-Penal-470-uma-excecao-para-a-historia/4/29546). [Aspas, reticências e dados sobre o autor adicionados por este blog 'democracia&política'].
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