A revista Época desta semana publica a seguinte reportagem de Mariana Sanches, de Alcântara (MA):
“A concessão de terras para descendentes de escravos em torno da base de Alcântara adia outra vez o cronograma do programa brasileiro de conquista do espaço”
“O telhado da casa do agricultor Raimundo Nonato Ferreira é o símbolo de uma das mais longas disputas de terras da recente história brasileira. Retrata também um velho dilema do país: como virar uma potência no futuro e superar antigos problemas que ainda nos prendem ao passado.
De um lado, cerca de 17 mil pessoas que se autointitulam descendentes de escravos reivindicam o direito de ter reconhecida como sua mais de metade das terras do município de Alcântara, no Maranhão. Eles têm o apoio da Secretaria Especial da Igualdade Racial, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e do Ministério do Meio Ambiente.
Do outro lado, a Aeronáutica, o Ministério da Defesa, o Ministério da Ciência e Tecnologia e a Agência Espacial Brasileira querem um pedaço da mesma terra para o centro de lançamento de foguetes e satélites do Programa Espacial Brasileiro.
“Há 20 anos eu não consigo decidir se coloco as telhas no lugar da palha no telhado lá de casa”, diz Raimundo Nonato Ferreira, cujo rosto carrega mais feições de índio que de negro. “O pessoal da Aeronáutica já falou que teríamos de sair das nossas terras várias vezes. Se fizesse melhorias na casa, eu perderia dinheiro. Há uns cinco anos todo mundo passou a dizer que a gente é quilombola, e agora disseram que a terra é mesmo nossa.”
Raimundo Nonato, de 54 anos, é um dos 50 moradores do povoado de Baracatatiua, no litoral norte de Alcântara. Segundo ele, há cerca de 200 anos seus ancestrais, negros escravos abandonados por seus donos ou fugitivos das fazendas de cana-de-açúcar e de algodão, procuraram um lugar para se esconder dos capitães do mato. A mão de obra escrava fez de Alcântara, até o século XVIII, um dos principais centros produtores do Brasil Colonial. Os escravos enfiaram-se em uma mata rica em babaçus, buritis e açaís, próxima ao mar. Esse teria sido o destino de cerca de 8 mil negros que fundaram mais de uma centena de quilombos na região. Seus descendentes não querem ceder mais espaço às torres do centro de lançamento de foguetes de Alcântara, ali instaladas desde o começo da década de 80.
O litígio se arrasta há mais de 20 anos e deverá ser analisado em breve pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Em novembro de 2008, uma comissão interministerial coordenada pela Casa Civil tentou encerrar a disputa. O governo federal reconheceu que os 780 quilômetros quadrados ao norte da península de Alcântara pertencem aos quilombolas. A decisão ameaça colocar um ponto final na história do Programa Espacial Brasileiro no Maranhão. “Nós ficamos com pouco mais de 90 quilômetros quadrados, o que torna inviável a expansão do programa”, afirma o coronel Nilo Andrade, comandante da base espacial de Alcântara. “Se continuar como está, teremos de sair daqui.” O coronel Nilo Andrade é um dos autores de um pedido de revisão da concessão das terras apresentado pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim. No fim de dezembro, Jobim pediu à Advocacia-Geral da União (AGU) uma nova solução para o impasse, que seja capaz de conciliar nas mesmas terras o futuro do programa espacial e o passado dos quilombolas.
A família de Raimundo Nonato e seus vizinhos em Baracatatiua mantêm um estilo de vida semelhante ao de seus bisavós no século XIX. Vivem das roças de mandioca, milho, melancia e arroz e da pesca de subsistência. No povoado, não há luz elétrica. Às 7 da noite, a maior parte da comunidade já foi dormir. Lamparinas de querosene iluminam o local e o rádio de pilha ainda é o principal meio para saber o que acontece no resto do mundo. Não há rede de esgoto nem água encanada. A água é retirada de igarapés, três vezes por dia. Os banheiros limitam-se a um buraco no chão. As casas são de barro, os telhados de palha e o chão de terra batida. Para chegar ao povoado, é preciso enfrentar uma hora em veículos com tração nas quatro rodas. As estradas são de terra, as pontes são troncos de árvore. Raimundo Nonato nunca teve um emprego, nem mesmo um salário. Estudou só até a 3a série do ensino fundamental em uma escola na própria comunidade. A escola foi desativada neste ano porque, segundo a Prefeitura de Alcântara, a quantidade de alunos era insuficiente. Raimundo Nonato nasceu e morou a vida toda no lugar que parecia esquecido do mundo até a construção do centro de foguetes. “A gente achou que ninguém mais ia aparecer por aqui, até que um dia essa história caiu em cima da gente”, diz Raimundo Nonato.
O conflito que impediu a substituição do telhado de Raimundo Nonato tem origem na forma como o governo militar, na década de 80, resolveu pôr de pé o programa espacial brasileiro, usando Alcântara como o principal centro de lançamento de satélites e de foguetes de grande porte. Seiscentos e vinte quilômetros quadrados do município de Alcântara foram desapropriados pelo governo do Maranhão e entregues à Aeronáutica. “Passamos a tomar conta da área como se fosse nossa, mas, das terras que nos foram cedidas, 80% nunca foram legalizadas”, diz o coronel Nilo Andrade. “Temos mais de 90 processos na Justiça há 25 anos para tentar descobrir quem são os donos dessas terras. Normalmente, o problema é a falta de documentação. O dono da terra já morreu, mas não tem atestado de óbito. O herdeiro não tem certidão de nascimento.”
INCERTEZA
Mesmo em terras irregulares, o centro de Alcântara começou a ser construído em 1982, a poucos quilômetros de Baracatatiua. Vinte e duas comunidades de quilombolas foram deslocadas de suas terras no litoral de Alcântara para sete agrovilas, com casas de alvenaria organizadas em fileiras. A cada uma correspondia um lote de 15 hectares de terra. “A Aeronáutica prometeu hospital, salão de jogos, escola de Primeiro Mundo para nossos filhos e assistência técnica para a roça ficar mais produtiva. Quem é que não ia querer?”, diz Leandra de Jesus Silveira, de 68 anos.
Em 1986, Leandra, seu marido e seis filhos estavam entre as 312 famílias de quilombolas removidas. O bom relacionamento dos quilombolas com os militares durou pouco. A luz e a água encanada levaram anos para chegar. As escolas nas agrovilas se limitam ao ensino fundamental. O auxílio técnico para a lavoura não veio. Por isso, as famílias continuaram a usar o método rudimentar de queimadas para preparar a terra para o cultivo. “Houve uma queda de pelo menos 20% na produção local de farinha de mandioca porque as famílias passaram a trabalhar em uma quantidade de terra menor do que dispunham antes”, afirma o antropólogo Alfredo Wagner, autor de um relatório que atesta a identidade quilombola da população de Alcântara. O relatório, de 2002, é a principal peça de sustentação da decisão de novembro passado do Incra.
Com a remoção para as agrovilas, os quilombolas perderam sua segunda principal fonte de alimento: o mar. Para poder pescar, têm de atravessar a pé 8 quilômetros dentro da área do centro de foguetes, desde que estejam registrados no comando da base, com fotos e dados pessoais. “Antigamente, chegávamos em casa com o peixe ainda vivinho. Agora, se o pescador sair daqui e for a pé até o mar, o peixe já chega em casa estragado”, afirma o quilombola Inocêncio Torres, o Bacurau, um dos moradores removidos na década de 1980. “Agora, temos de comprar o peixe de uns pescadores que trazem de moto até aqui no isopor. Um quilo de peixe custa R$ 8. Se eu comprar 1 quilo por dia, gasto mais de R$ 200 no mês, o que é muito para quem quase não tem renda.”
A maior parte dos quilombolas vive com a ajuda do Bolsa Família. Nem todos conseguem ter dinheiro nas mãos todos os meses e o sistema de trocas de mercadorias ainda funciona entre as comunidades. Os quilombolas que hoje moram em agrovilas também nunca receberam a documentação de suas casas, prometida pela Aeronáutica. “Reconhecemos que parte das promessas feitas a eles não foi cumprida, e não posso tirar deles a razão de nos ver com desconfiança”, diz o coronel Nilo Andrade.
A experiência dos quilombolas deslocados para as agrovilas, somada à decisão do governo Lula de fazer valer o Artigo 68 da Constituição de 1988, que dá aos quilombolas direitos sobre as terras de seus ancestrais, aguçou o conflito entre o centro de lançamento de Alcântara e as comunidades em torno dele. Chegaram à região o Ministério Público Federal e uma quinzena de ONGs para dar assistência aos quilombolas. A questão foi parar na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e na Organização Internacional do Trabalho.
Os quilombolas fizeram como reféns funcionários da empresa que quer fazer lançamentos de foguetes
Há um ano, a disputa descambou para a violência. Segundo a Aeronáutica, quilombolas fizeram como reféns funcionários da Alcântara Cyclone Space, uma empresa binacional Brasil-Ucrânia que tenta explorar comercialmente o centro de foguetes. Na ocasião, os funcionários abriam uma estrada de 5 quilômetros nas áreas da comunidade quilombola Mamuna. Por causa do pedido de revisão da demarcação, o clima continua tenso. “Companheiros, precisamos estar preparados para pegar em armas se isso for preciso para defender as nossas terras”, disse, na semana passada, Sérvulo Borges, militante fundador do Movimento dos Atingidos pela Base (MAB), durante reunião com lideranças das comunidades.
A resistência dos quilombolas abortou o plano original da Aeronáutica de remover toda a população do litoral – no total, seriam mais 400 famílias. Para conciliar a presença do centro de foguetes com a das comunidades, a Aeronáutica passou a defender a criação de “ilhas”, num total de 60 quilômetros quadrados, dentro das terras dos quilombolas, que seriam usadas como áreas de lançamento. Por essa proposta, rejeitada pelos povoados e pela Secretaria Especial da Igualdade Racial, os quilombolas podem permanecer em suas terras. “A criação das ilhas é imprescindível para o programa espacial brasileiro”, diz o coronel Nilo Andrade. Se a concessão das terras para os quilombolas não for revista pela AGU, a Aeronáutica considera mudar o centro de lançamentos para outro Estado – uma possibilidade seria o Amapá, onde, na década de 80, foram feitos estudos para construção de uma base.
No Amapá, há áreas com características semelhantes às de Alcântara, que favorecem o lançamento de foguetes. A principal delas é a proximidade da linha do Equador. Um foguete ou satélite lançado desse ponto da Terra recebe maior impulso pelo movimento natural do planeta e precisa de 30% menos combustível para entrar em órbita, uma economia estimada em R$ 5 milhões. “Hoje, só a França possui um centro de lançamento como o de Alcântara”, afirma Carlos Ganem, presidente da Agência Espacial Brasileira (AEB).
A mudança da base seria mais um revés para o emperrado programa espacial brasileiro. Embora no discurso seja tratado como prioridade pelo governo brasileiro, nos últimos anos o programa sofreu com orçamentos baixos para seus altos objetivos. Até hoje, o centro de Alcântara tentou fazer três lançamentos de grandes foguetes, chamados de Veículo Lançador de Satélites (VLS). Nenhum deles chegou a entrar em órbita. O último nem sequer saiu do solo. Em agosto de 2003, ele explodiu enquanto ainda estava preso à torre de lançamento. Havia 21 pessoas no local. Todas morreram. A torre de lançamento, construída em aço resistente a altas temperaturas, foi derretida. Quase seis anos depois do acidente, as causas da tragédia não foram esclarecidas. Uma nova torre começa a ser construída neste mês. De acordo com o projeto inicial, custará pelo menos R$ 26 milhões. “Esperamos lançar o próximo VLS em 2012”, afirma o coronel Nilo Andrade. “O cronograma original previa que estaríamos lançando esse foguete agora, mas houve atraso.”
Exatos 30 anos depois do início da cruzada para tentar conquistar o espaço, o Brasil continua a usar bases no exterior para fazer seus lançamentos. Os últimos três satélites brasileiros, chamados CBERS (sigla em inglês para Satélite Sino-Brasileiro de Recursos Terrestres), foram lançados da China. Cada lançamento custou US$ 25 milhões. O Brasil arcou com 30% desses custos, o equivalente a US$ 7,5 milhões a cada lançamento. Para os dirigentes do Programa Espacial Brasileiro, esse é um dinheiro que não precisaria sair do Brasil. Ao contrário, se o centro de Alcântara fosse desenvolvido como gostaria a Aeronáutica, haveria lá mais três sítios de lançamento exclusivamente comerciais, que tornariam o programa lucrativo.
Um deles seria operado pela Alcântara Cyclone Space numa área de cerca de 20 quilômetros quadrados entre as comunidades quilombolas de Mamuna e Baracatatiua. O primeiro satélite a ser lançado pela empresa estava programado para julho de 2010. “Mas com todas essas alterações no território acabamos perdendo nossa área”, diz Roberto Amaral, diretor da Alcântara Cyclone Space para o Brasil e ex-ministro de Ciência e Tecnologia. “Teremos de diminuir a quantidade de foguetes que lançaríamos de oito para quatro ou no máximo seis veículos por ano. E ainda corremos o risco de não conseguir cumprir o acordo com a Ucrânia para lançar o foguete em 2010.” A empresa teme ainda perder clientes da Alemanha, Argentina, Holanda e do Japão, entre outros países, e milhões de dólares.
A saída do centro de foguetes de Alcântara seria uma perda também para os quilombolas da região. Os impostos pagos pela base representam quase metade da arrecadação do município. “Seria bom se a base pudesse trazer emprego a nossos filhos e tecnologia para nossas roças”, diz Raimundo Nonato. Se a AGU não encontrar uma solução conciliatória, o destino mais provável dos moradores de Alcântara será continuar preso aos grilhões do passado.”
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2 comentários:
Penso que se o governo Lula conseguir lançar o Cyclone até 2010 faria um grande sucesso no eleitorado mais esclarecido e das regiões sul e sudeste, onde ele é mais fraco.(Além é claro de sucesso no Nordeste onse se situa o programa)
E o dinheiro necessário não é tanto, mas a visão e educação dos nossos líderes que é muito limitada.
Iurikorolev,
Hoje, com o IBAMA, INCRA, Min. Público, TCU, ONG nacionais e estrangeiras, seria impossível fazer Itaipú, Carajás, Tucuruí, Ponte Rio-Niterói etc. Não estranho que não haverá foguete em 2010.
Maria Tereza
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