quinta-feira, 11 de setembro de 2008

O AFEGANISTÃO NAUFRAGA NO CAOS

Ángeles Espinosa, em Cabul, escreveu para o jornal espanhol El País o texto seguinte, que li no UOL traduzido por Luiz Roberto Mendes Gonçalves:

O elevado número de vítimas civis das forças internacionais e a falta de desenvolvimento do país dificultam o combate aos taleban.

Talvez nunca saibamos o que aconteceu em Azizabad na madrugada do último 22 de agosto.

Mas o bombardeio dessa aldeia na província de Herat está prestes a se transformar no ponto de inflexão nas relações entre o governo do Afeganistão e a comunidade internacional.

Nesse dia, uma patrulha conjunta de forças americanas e afegãs seguia a pista de um suposto colaborador da Al Qaeda. Antes do amanhecer chegaram a Azizabad.

Os militares insistem que dispararam contra eles primeiro e afirmam que além de cerca de 30 taleban morreram entre cinco e sete civis; mas as autoridades afegãs afirmam que o ataque foi um erro e que deixou 96 civis mortos, incluindo 60 crianças e 15 mulheres. A ONU apóia a versão das autoridades afegãs.

Foi a gota que fez transbordar o copo. Depois de meses de queixas pelo elevado número de vítimas civis causadas pelas tropas estrangeiras na luta contra o terrorismo, o governo de Hamid Karzai anunciou uma revisão dos acordos pelos quais essas forças operam no Afeganistão. "A presença da comunidade internacional no Afeganistão deveria ser regulamentada com base em tratados bilaterais", disse um comunicado do Conselho de Ministros afegão. Ele também pede que se estabeleçam limites para as forças militares e "parem imediatamente os ataques aéreos contra alvos civis, as revistas unilaterais de residências e as detenções ilegais".

Em julho outro bombardeio americano atingiu um casamento e causou 47 mortes, entre elas a da noiva. Não foi a primeira vez que as bombas interromperam um casamento. Depois do desmentido inicial, os militares pediram desculpas. Mas o incidente em Azizabad, caso se confirmem as 96 mortes de civis, seria o mais grave desde a derrubada do regime taleban em 2001.

"Temos de chegar ao fundo do assunto", afirma o representante do secretário-geral da ONU para o Afeganistão, Kai Eide. "Não sobre quantos mortos houve, mas sobre como algo assim pôde ocorrer e o que faremos agora", adverte esse curtido diplomata norueguês que ordenou imediatamente sua própria investigação. A rapidez e firmeza do relatório, que basicamente corrobora a versão do governo afegão ao falar em "provas verossímeis" da morte de até 90 civis, abalou as chancelarias dos países ocidentais em Cabul.

"Foi uma aposta arriscada de Eide", comenta um embaixador europeu. "Caso se confirme, vai nos obrigar a redefinir uma estratégia para a qual não temos soldados suficientes nem estamos dispostos a sofrer baixas; mas se não for assim sua credibilidade vai se ressentir", acrescenta a fonte.

Eide assume o risco. "Se não tivesse agido com rapidez diante de um incidente desse calibre, teria sido criticado. Creio que foi a decisão adequada", afirma, sem esconder que se encontra sob a pressão tanto de Karzai como dos EUA.

"Quando morrem civis inocentes as pessoas perguntam ao governo por que, e precisamos fazer a mesma pergunta a nossos amigos", indica o ministro sem pasta Hedayat Amin Arsala. "Não só cria tensões entre nós e a comunidade internacional, como também com nossa opinião pública; além disso, torna a luta contra o terrorismo muito mais difícil, porque dá argumentos aos elementos contra os quais estamos lutando." Por isso defende a necessidade de "alcançar um acerto que permita lutar contra o terrorismo e a insurgência, minimizando as baixas civis".

"O presidente Karzai tem todo o direito a melhores acordos e conta com meu pleno apoio", reconhece o representante da ONU, depois de lembrar que, apesar da fragilidade comparativa do Afeganistão diante do peso da comunidade internacional, "estamos falando de um país soberano". Entrar nesse debate é abrir a caixa de Pandora da imunidade das tropas estrangeiras e do destino dos presos que os EUA mantêm no limbo jurídico em Bagram, assuntos em que Washington, o principal apoio do presidente afegão, preferia não tocar.

Sem dúvida, a ordem de Karzai tem muito a ver com as eleições do ano que vem. O apoio dos afegãos à presença das forças internacionais está se erodindo devido aos ataques aos civis, além da infiltração e propaganda dos rebeldes.

Toda noite, desde o incidente de Azizabad, a televisão nacional colhe depoimentos de antiamericanismo. Ao mesmo tempo, está surgindo um consenso internacional sobre a conveniência de introduzir mais coordenação e transparência na forma como essas forças operam.

"Este e outros casos anteriores mostram que devemos seguir nessa direção", admite Eide, convencido de que "alguns deles poderiam ter sido evitados com maior coordenação e transparência entre forças militares ou grupos de segurança".

Ele sabe do que fala, porque durante seis anos foi embaixador de seu país na Otan. "Há tantas forças em campo... e com a delicadeza de muitas dessas operações ainda me surpreende que operemos sem o nível de coordenação de que precisaríamos. É surpreendente e tem de ser solucionado", afirma, dando especial ênfase à última palavra, que pronuncia sílaba por sílaba.

No Afeganistão se desenvolvem duas operações militares simultâneas e independentes, embora às vezes difíceis de diferenciar. De um lado, a Força Internacional de Assistência à Segurança (mais conhecida por sua sigla em inglês, Isaf), estabelecida nos Acordos de Bonn de dezembro de 2001 e ao amparo de várias resoluções da ONU, foi ampliando sua área de operações por todo o país a partir de Cabul.

Desde 2003 encontra-se sob o comando da Otan, embora conte com tropas de 40 países, incluindo os EUA. Por outro lado, a operação Liberdade Duradoura, que os EUA iniciaram em outubro de 2001 contra a Al Qaeda e seus protetores taleban, continuou em campo na colaboração com as forças de segurança afegãs e a participação simbólica de outros países.

Esta última, por sua natureza de combate, é que causa mais vítimas civis e sofre mais baixas.

Fala-se na necessidade de unificar o comando das duas operações, mas vários países se mostram reticentes. "É verdade que a Isaf é uma loucura de comandos e restrições, mas a Liberdade Duradoura também é; junto com a operação antiterrorista propriamente dita, intervêm a CIA e os grupos de Operações Especiais que agem por sua conta", justifica-se o embaixador europeu acima citado. "Além disso, quem se encarregaria de Bagram?"

"Para os afegãos não há diferença entre a Isaf e a Liberdade Duradoura", constata o príncipe Mustafá. "Todos os soldados usam uniforme e parecem europeus, por isso quando ocorrem erros são culpados em conjunto." Para o neto do falecido rei Zaher, que nos últimos meses entrou na arena política, o acontecimento parece intolerável.

A crise revelou as crescentes diferenças do governo afegão com seus aliados ocidentais. Tanto no que percebe como uma falta de objetivos políticos destes como pelo desencanto de sua própria opinião pública. "A comunidade internacional se concentrou na intervenção militar e no governo, e não na sociedade civil, o que contribui para que a brecha entre os afegãos e seus governantes aumente todos os dias", analisa Aziz Rafiee, diretor do Fórum para a Sociedade Civil Afegã.

Algumas vozes inclusive vão além e pedem abertamente a retirada das tropas. "Os soldados estrangeiros são vítimas das políticas errôneas de seus países. Devem deixar o Afeganistão", manifesta a deputada Joya Malalai, indiferente aos que temem que isso leve a uma guerra civil. "A situação atual não pode ser pior. A comunidade internacional não nos trouxe nem segurança nem liberdade", afirma. A opinião de Malalai - uma mulher expulsa do Parlamento por ter insultado seus colegas - ainda é minoritária, mas está crescendo, especialmente nas áreas rurais do sul do país, que mal se beneficiaram com as mudanças.

"Talvez tenhamos cometido alguns erros desde o início", admite o ministro Arsala. "A decisão [americana] de antepor a luta contra o terrorismo ao desenvolvimento do país assentou as bases para a situação que vivemos hoje."

Na opinião dele, "a ênfase deveria ter sido contrária: o Afeganistão primeiro". O ministro mostra-se convencido de que se o Estado tivesse sido mais forte os taleban não teriam emergido outra vez ou teriam se transformado em um problema menor. "Não estão ganhando. Só estão tornando as coisas mais difíceis para nós", conclui.

Em todo caso, há unanimidade sobre a urgência de uma mudança de rumo. Shah Masoud, o conhecido livreiro de Cabul, expressa isso de forma muito gráfica: "Quando um computador trava, é preciso desligá-lo e reiniciá-lo. Do mesmo modo, a comunidade internacional no Afeganistão tem de recomeçar sobre novas bases, porque as atuais falharam."

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