quarta-feira, 10 de setembro de 2008

"O ESCUDO ANTIMÍSSEIS É CONTRA A RÚSSIA", AFIRMA MIKHAIL GORBATCHOV

O jornal francês Le Monde, em texto de Andrea Rizzi em Madri e tradução para o UOL de Jean-Yves de Neufville, publicou ontem:

“Mikhail Gorbatchov (nascido em Privolnoye em 1931), líder da União Soviética de 1985 até 1991 e prêmio Nobel da Paz, concedeu esta entrevista na segunda-feira (8) em Madri, cidade onde fez escala a caminho da Expo de Zaragoza, onde está previsto que pronuncie um discurso nesta terça-feira.

Gorbatchov manifestou sua decepção com o Ocidente, que descumpriu suas promessas, e avisou que a Rússia não está mais disposta a aceitar a liderança e lições dos EUA. "A Rússia não dançará ao ritmo da música dos outros. Quer ser tratada de igual para igual."

"A Rússia não dançará ao ritmo da música dos outros", diz o ex-presidente soviético.

EL PAÍS - HOUVE UM MOMENTO DEPOIS DA QUEDA DO MURO DE BERLIM EM QUE PARECEU QUE O ESPAÇO ENTRE VLADIVOSTOCK E VANCOUVER PODERIA SE TRANSFORMAR EM UM ÚNICO LADO.

Mikhail Gorbatchov - (sem esperar que a pergunta seja concluída) Isso foi possível! Não era uma ilusão, houve um momento em que foi possível.

EL PAÍS - E HOJE ESSA É UMA VISÃO DESTRUÍDA, PELO MENOS PARA OUTRA GERAÇÃO?

Gorbatchov - A história dos últimos 15 anos mostra que essa visão era correta e continua sendo. Mas quando a União Soviética desmoronou alguns perderam a cabeça. A UE começou a se expandir em um ritmo tremendo, a Otan fez o mesmo. Uma decisão especialmente perigosa, que foi tomada apesar de promessas em contrário. Assim, hoje assistimos a essas novas tensões e atritos.

EL PAÍS - É VERDADE QUE JAMES BAKER (EX-SECRETÁRIO DE ESTADO DOS EUA) LHE PROMETEU QUE A OTAN NÃO SE EXPANDIRIA PARA O LESTE SE O SENHOR APROVASSE A REUNIFICAÇÃO DA ALEMANHA E A PERMANÊNCIA DO NOVO SÚDITO NA ALIANÇA?

Gorbatchov - Não foi uma promessa feita para mim, mas para o mundo. Está gravada no memorando da conversa que mantivemos.

EL PAÍS - A AÇÃO DA RÚSSIA NA GEÓRGIA FOI UMA MENSAGEM CONTRA ESSA DINÂMICA?

Gorbatchov - Não. Não foi nenhuma mensagem. Prova disso é o fato de que no Transdniester as autoridades russas estão muito próximas de fechar um compromisso com a Moldávia, segundo o qual esse território fica fazendo parte desse país, com certas garantias de autonomia. No caso da Ossétia também estávamos dispostos a falar.

EL PAÍS - SAAKASHVILI (O PRESIDENTE DA GEÓRGIA) ATUOU POR CONTA PRÓPRIA?

Gorbatchov - Não, é claro que não.

EL PAÍS - QUEM O ACONSELHOU?

Gorbatchov - Se você não sabe, terei de dizer. Os EUA. Mas também alguns países da UE. Os EUA armaram abundantemente a Geórgia. A Ucrânia também. Ninguém pode forçar ninguém a fazer algo como o que Saakashvili fez. Mas certamente havia um plano para resolver esse problema por meios militares.

EL PAÍS - E AGORA O QUE ESPERA? (A REUNIÃO ENTRE SARKOZY, BARROSO, SOLANA E MEDVEDEV EM MOSCOU AINDA NÃO HAVIA TERMINADO)

Gorbatchov - Agora a Rússia agirá responsavelmente, mas não aceitará que seus interesses nacionais sejam ignorados. A Europa precisa revisar sua posição. Os governos Clinton e Bush começaram jogos geopolíticos que abriram novas linhas de divisão no continente. Sinto que os EUA não foram um bom conselheiro da Europa nestes anos. Nós, europeus, deveríamos dizer aos amigos americanos que conhecemos seus êxitos e seu poder, mas que não aceitamos sua liderança. Não aceitaremos instruções de política internacional ou econômica. As diretrizes que o FMI deu à Rússia no início dos anos 90 foram um desastre.

EL PAÍS - PARA ONDE SE DEVERIA IR, ENTÃO?

Gorbatchov - A Europa deveria promover uma nova arquitetura de segurança européia, com a constituição de um conselho de segurança continental. Um diretório no qual estejam representadas todas as nações européias e, por exemplo, com poderes para atos de manutenção da paz. Assim sairíamos de uma situação em que os EUA dominam a agenda. Algo parecido estava sobre a mesa em 1990, mas o Ocidente acreditou que havia ganhado e decidiu não cumprir suas promessas. Não só os EUA. É a primeira vez que digo isso, mas a Alemanha também tem de assumir suas responsabilidades. Cumpriu os tratados bilaterais com a União Soviética, mas na Otan apoiou a expansão.

EL PAÍS - A PROPÓSITO DE NOVAS DIVISÕES NA EUROPA: O ESCUDO ANTIMÍSSEIS QUE OS EUA INSTALARÃO NA POLÔNIA É PARA O IRÃ OU PARA A RÚSSIA?

Gorbatchov - É contra a Rússia. O Irã é uma ilusão. Pela experiência dos últimos anos, não confiamos mais no governo Bush.

EL PAÍS - BUSH ESTÁ PRESTES A TERMINAR SEU MANDATO PRESIDENCIAL. PUTIN JÁ CONCLUIU O SEU. CONTINUA SENDO O HOMEM MAIS PODEROSO NA RÚSSIA?

Gorbatchov - Ele é respeitado, forte, sua credibilidade é alta porque fez muitas coisas para a Rússia. Mas isso cria condições favoráveis para Medvedev. Hoje a Rússia é criticada e está sob pressão. Creio que foi tratada por um duplo critério. Espero que o Kremlin não adote a lógica do olho por olho. Pode-se confiar em uma Rússia responsável se for tratada como um sócio igual e não como um parceiro júnior. Temos experiência, história, potencial para competir no mundo. Não dançaremos ao ritmo da música dos outros, seja jazz ou outra coisa. A Rússia tem sua própria música.

EL PAÍS - O SENHOR MUDARIA ALGO DO QUE FEZ EM SEUS ANOS NO KREMLIN?

Gorbatchov - Seguiria o mesmo caminho geral, mas mudaria algumas táticas. Por exemplo, atuamos tarde demais para reformar o partido (comunista) e o partido acabou organizando um golpe contra mim. Também atuamos tarde demais para reformar a União Soviética. E não soubemos evitar que na transição se abrisse uma enorme brecha de renda entre alguns e o resto. Houve uma tremenda inflação e tudo piorou por causa do golpe nas costas que nos deram Reagan e a Arábia Saudita, que organizaram uma forte queda do preço do petróleo. O cru chegou a US$ 10 o barril. Perdemos dois terços de nossas receitas em divisas estrangeiras. E isso destruiu nossos planos. Inclusive nessa situação poderíamos ter feito algo. A opção correta teria sido cortar o gasto militar. Não o fizermos, é algo que eu lamento. Assumo a responsabilidade por essa decisão que foi um erro”.

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