domingo, 21 de setembro de 2008

SAEM OS EUA, ENTRA A AMÉRICA DO SUL

Continua atual o texto de Clóvis Rossi, enviado especial da Folha de São Paulo a Santiago, publicado no início desta semana.

“A cúpula da Unasul (União de Nações Sul-Americanas), realizada na segunda-feira em Santiago, marca talvez o primeiro momento em que os Estados Unidos não exercem o protagonismo em uma crise na região desde a independência dos países sul-americanos, que está para completar 200 anos.

Daria, portanto, para chamá-la de histórica, mas é prudente aguardar para ver se a efeméride é acompanhada de eficiência, sem o que se torna apenas um registro banal.

É prudente também esperar para ver se a marginalização de Washington faz parte de um fenômeno mais amplo, de redistribuição do poder em escala global, ou é apenas conseqüência de estar na Casa Branca um "pato manco", como os americanos chamam presidentes em fim de mandato e sem poder, que além disso é desastrado, para dizer o mínimo.

Goste-se ou não, a América do Sul (e a América Latina, mais amplamente) ainda é o pátio traseiro dos EUA. Assim como a Rússia, muito menos poderosa hoje, embora também historicamente imperial, não permitiu movimentos em territórios que considera seus (caso Geórgia/Ossétia do Sul/ Abkházia), não é razoável supor que os EUA deixarão que seus interesses sejam contrariados na sub-região.

Ainda mais que a liderança alternativa, a do Brasil, é historicamente relutante em aceitar tal papel. Basta ver que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, antes de embarcar para a cúpula de Santiago e mesmo durante a sua realização, fez questão de enfatizar que cabia a Evo Morales, o presidente boliviano, decidir se aceitava o diálogo com a oposição e, por extensão, a intermediação da Unasul.

Em nenhum momento, Lula fez qualquer tipo de sermão sobre o comportamento que deveria ser adotado, seja pela própria Bolívia, seja pela Unasul. Os EUA (e também a Europa, é bom deixar claro) raramente deixam de dar as receitas que consideram não só as melhores, mas as únicas.

CHÁVEZ E LULA

Ainda assim, o Brasil é cristalinamente o líder regional. É puro espetáculo especular, como o faz parte importante da mídia sul-americana, com uma disputa de liderança Brasil/Venezuela ou Lula/Hugo Chávez.

Pelo território, pela população e pelo tamanho da economia, o Brasil, qualquer que seja o presidente, é o líder natural, indisputado. Com Lula, é mais ainda porque o presidente tornou-se, além de estrela pela sua história de vida, a palavra da moderação e do sentido comum nos foros regionais e também nos internacionais.

Chávez só lhe disputa a liderança no que restou de esquerda -e não é muito, seja nas urnas, seja nos palácios de governo. Embora, pelo passado, todos os presidentes da Unasul sejam de esquerda, exceto Álvaro Uribe, só 3 dos 12 merecem hoje o rótulo pela ação político-administrativa (Chávez, Evo Morales e o equatoriano Rafael Correa).

Mesmo Alan García, hoje sempre listado à direita, é do Apra, sigla histórica que quer dizer Aliança Popular Revolucionária Americana. Seu fundador, Victor Raúl Haya de la Torre, escreveu nos anos 30 um clássico chamado "O Apra e o antiimperialismo" -muito antes, portanto, de Hugo Chávez adotar o mote.

A liderança de Lula, no entanto, não se exerce pelo confronto, como ficou evidente, pela enésima vez, na cúpula de segunda-feira. Chávez discursou, de novo, contra a suposta ou real "mão oculta" de Bush na crise boliviana, evocou Salvador Allende, deposto faz 35 anos, com ativa participação norte-americana, e ainda voltou a acusar generais bolivianos de golpistas.

BRASIL RESPONSÁVEL

Lula tomou a palavra, fingiu que não ouvira nada e definiu o eixo da intervenção da Unasul na crise boliviana: se Morales aceitar o diálogo, vamos a ele. Do contrário, não há nada que a Unasul possa fazer. É verdade que a proposta original do que está sendo chamado de "mesa de diálogo" é do governo chileno. Mas, a julgar pelo que a Folha ouviu dos próprios chilenos, foi a intervenção de Lula que a tornou a pedra de toque da cúpula.

O que, de resto, aumenta a responsabilidade do governo brasileiro na gestão da crise. Um fracasso agora tornaria a cúpula de Santiago não a primeira intervenção sul-americana independente dos EUA, mas o seu primeiro fracasso”.

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