quarta-feira, 11 de maio de 2011

CARTA DE UM NOBEL DA PAZ A BARACK OBAMA


O artigo é de Adolfo Pérez Esquivel.

“Estimado Barack, ao dirigir-lhe esta carta o faço fraternalmente para, ao mesmo tempo, expressar-lhe a preocupação e indignação de ver como a destruição e a morte semeadas em vários países, em nome da “liberdade e da democracia”, duas palavras prostituídas e esvaziadas de conteúdo, terminam justificando o assassinato e são festejadas como se tratassem de acontecimento desportivo.

Indignação pela atitude de setores da população dos Estados Unidos, de chefes de Estado europeus e de outros países que saíram a apoiar o assassinato de Bin Laden, ordenado por seu governo e sua complacência em nome de uma suposta justiça. Não procuraram detê-lo e julgá-lo pelos crimes supostamente cometidos, o que gera maior dúvida: o objetivo foi assassiná-lo.

Os mortos não falam e o medo do justiçado, que poderia dizer coisas inconvenientes para os EUA, resultou no assassinato e na tentativa de assegurar que “morto o cão, terminou a raiva”, sem levar em conta que não fazem outra coisa que incrementá-la.

Quando lhe outorgaram o Prêmio Nobel da Paz, do qual somos depositários, lhe enviei uma carta que dizia: “Barack, me surpreendeu muito que tenham lhe outorgado o Nobel da Paz, mas agora que o recebeu deve colocá-lo a serviço da paz entre os povos; tem toda a possibilidade de fazê-lo, de terminar as guerras e começar a reverter a situação que viveu seu país e o mundo”.

No entanto, ao invés disso, você incrementou o ódio e traiu os princípios assumidos na campanha eleitoral frente ao seu povo, como terminar com as guerras no Afeganistão e no Iraque e fechar as prisões em Guantánamo e em Abu Graib no Iraque. Não fez nada disso. Pelo contrário, decidiu começar outra guerra contra a Líbia, apoiada pela OTAN e por vergonhosa resolução das Nações Unidas. Esse alto organismo, apequenado e sem pensamento próprio, perdeu o rumo e está submetido às veleidades e interesses das potências dominantes.

A base fundacional da ONU é a defesa e promoção da paz e da dignidade entre os povos. Seu preâmbulo diz: “Nós os povos do mundo...”, hoje ausentes desse alto organismo.

Quero recordar um místico e mestre que tem grande influência em minha vida, o monge trapense da Abadia de Getsemani, em Kentucky, Tomás Merton, que diz: “a maior necessidade de nosso tempo é limpar a enorme massa de lixo mental e emocional que entope nossas mentes e converte toda vida política e social em enfermidade de massas. Sem essa limpeza doméstica não podemos começar a ver. E se não vermos não podemos pensar”.

Você era muito jovem, Barack, durante a guerra do Vietnã e talvez não lembre a luta do povo norte-americano para opor-se à guerra. Os mortos, feridos e mutilados no Vietnã até o dia de hoje sofrem as consequências dessa guerra.

Tomás Merton dizia, frente a um carimbo do Correio que acabava de chegar, “The U.S. Army, key to Peace” (O Exército dos EUA, chave da paz): “Nenhum exército é chave da paz. Nenhuma nação tem a chave de nada que não seja a guerra. O poder não tem nada a ver com paz. Quanto mais os homens aumentam o poder militar, mais violam e destroem a paz”.

Acompanhei e compartilhei com os veteranos da guerra do Vietnã, em particular Brian Wilson e seus companheiros que foram vítimas dessa guerra e de todas as guerras.

A vida tem esse não sei o quê da imprevista e surpreendente fragrância e beleza que Deus nos deu para toda a humanidade e que devemos proteger para deixar às gerações futuras uma vida mais justa e fraterna, restabelecendo o equilíbrio com a Mãe Terra.

Se não reagirmos para mudar a situação atual de soberba suicida que está arrastando os povos a abismos profundos onde morre a esperança, será difícil sair e ver a luz; a humanidade merece destino melhor. Você sabe que a esperança é como o lótus que cresce no barro e floresce em todo seu esplendor mostrando sua beleza.

Leopoldo Marechal, esse grande escritor argentino, dizia que: “do labirinto, se sai por cima”.

E creio, Barack, que depois de seguir sua rota errando caminhos, você se encontra em um labirinto sem poder encontrar a saída e se enterra cada vez mais na violência, na incerteza, devorado pelo poder da dominação, arrastado pelas grandes corporações, pelo complexo industrial-militar, e acredita ter todo o poder e que o mundo está aos pés dos EUA porque impõem a força das armas e invadem países com total impunidade. É uma realidade dolorosa, mas também existe a resistência dos povos que não claudicam frente aos poderosos.

As atrocidades cometidas por seu país no mundo são tão grandes que dariam assunto para muita conversa. Isso é desafio para os historiadores que deverão investigar e saber dos comportamentos, políticas, grandezas e mesquinharias que levaram os EUA à monocultura das mentes que não permite ver outras realidades.

A Bin Laden, suposto autor ideológico do ataque às torres gêmeas, o identificam como o Satã encarnado que aterrorizava o mundo, e a propaganda do seu governo o apontava como “o eixo do mal”. Isso serviu de pretexto para declarar as guerras desejadas que o complexo industrial-militar necessitava para vender seus produtos de morte.

Você sabe que investigadores do trágico 11 de setembro assinalam que o atentado teve muito de “autogolpe”, como o avião contra o Pentágono e o esvaziamento prévio de escritórios das torres; atentado que deu motivo para desatar a guerra contra o Iraque e o Afeganistão, argumentando com a mentira e a soberba do poder que estão fazendo isso para salvar o povo, em nome da “liberdade e defesa da democracia”, com o cinismo de dizer que a morte de mulheres e crianças são “danos colaterais”. Vivi isso no Iraque, em Bagdá, com os bombardeios na cidade, no hospital pediátrico e no refúgio de crianças que foram vítimas desses “danos colaterais”.

A palavra é esvaziada de valores e conteúdo, razão pela qual chama o assassinato de “morte” e que, por fim, os EUA “mataram” Bin Laden. Não trato de justificá-lo sob nenhum conceito, sou contra todas as formas de terrorismo, desde a praticada por esses grupos armados até o terrorismo de Estado que o seu país exerce em diversas partes do mundo, apoiando ditadores, impondo bases militares e intervenção armada, exercendo a violência para manter-se pelo terror no eixo do poder mundial. Há um só eixo do mal? Como o chamaria?

Será que é por esse motivo que o povo dos EUA vive com tanto medo de represálias daqueles que chamam de “eixo do mal”? É simplismo e hipocrisia querer justificar o injustificável.

A Paz é uma dinâmica de vida nas relações entre as pessoas e os povos; é desafio à consciência da humanidade, seu caminho é trabalhoso, cotidiano e portador de esperança, onde os povos são construtores de sua própria vida e de sua própria história. A Paz não é dada de presente, ela se constrói e isso é o que lhe falta, meu caro, coragem para assumir a responsabilidade histórica com seu povo e a humanidade.

Não pode viver no labirinto do medo e da dominação daqueles que governam os EUA, desconhecendo os tratados internacionais, os pactos e protocolos de governos que assinam, mas não ratificam nada e não cumprem nenhum dos acordos, mas pretendem falar em nome da liberdade e do direito. Como pode falar de Paz se não quer assumir nenhum compromisso, a não ser com os interesses de seu país?

Como pode falar da liberdade quanto tem na prisão pessoas inocentes em Guantánamo, em Cuba, nos EUA, e nas prisões do Iraque, como a de Abu Graib, e do Afeganistão?

Como pode falar de direitos humanos e da dignidade dos povos quando viola ambos permanentemente e bloqueia quem não compartilha sua ideologia, obrigando-o a suportar seus abusos?

Como pode enviar forças militares ao Haiti, depois do terremoto devastador, e não ajuda humanitária a esse povo sofrido?

Como pode falar de liberdade quando massacra povos no Oriente Médio e propaga guerras e tortura, em conflitos intermináveis que sangram palestinos e israelenses?

Barack, olha para cima de seu labirinto e poderá encontrar a estrela para lhe guiar, ainda que saiba que nunca poderá alcançá-la, como bem diz Eduardo Galeano. Busca a coerência entre o que diz e faz, essa é a única forma de não perder o rumo. É um desafio da vida.

O Nobel da Paz é um instrumento a serviço dos povos, nunca para a vaidade pessoal.

Lhe desejo muita força e esperança e esperamos que tenha coragem de corrigir o caminho e encontrar a sabedoria da Paz.”

FONTE: escrito por Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz em 1980. Publicado em Buenos Aires, em 5 de maio de 2011, e transcrito no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17764).

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