terça-feira, 31 de dezembro de 2013

A GRANDE HISTÓRIA DE 2014 SERÁ O IRÃ


TUDO EM DISPUTA NO NOVO GRANDE JOGO

A grande história de 2014 será o Irã. Claro: a grande história do início do século 21 jamais deixará de ser EUA-China, mas será em 2014 que saberemos se é alcançável um acordo amplo, que transcenda o programa nuclear iraniano; e, se for, a miríade de ramificações afetará tudo que está em disputa no “Novo Grande Jogo” na Eurásia, inclusive EUA-China.

Por Pepe Escobar, no “Asia Times Online”

Como as coisas estão hoje, temos um acordo provisório entre o P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha) e o Irã, e acordo nenhum entre EUA e Afeganistão. Assim, mais uma vez, temos o Afeganistão configurado como campo de batalha entre o Irã e a Casa de Saud, parte de um jogo geopolítico jogado em ritmo de frenesi desde a invasão dos EUA contra o Iraque em 2003 ao longo da franja norte do Oriente Médio direto ao Khorasan e ao sul da Ásia.

Há ainda o elemento da paranoia saudita, que extrapola do futuro do Afeganistão para a perspectiva de um Irã completamente “reabilitado” tornado aceitável para as elites político/financeiras ocidentais. Isso, vale anotar, nada tem a ver com aquela ficção, a “comunidade internacional”. Afinal, o Irã nunca foi banido pelos BRICS, (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), pelo "Movimento dos Não Alinhados" e pela maioria do mundo em desenvolvimento.

AQUELES MALDITOS JIHADISTAS

Todos os atores significativos no governo de Barack Obama já alertaram o presidente Hamid Karzai [do Afeganistão] de que, ou ele assina um “acordo de segurança” bilateral que autoriza algum tipo de avatar da ocupação norte-americana, ou Washington retirará todas as suas tropas no final de 2014.

Fantoche esperto, Karzai ordenhará a coisa, até extrair dela a última gota de benefício para si próprio – e podem ser concessões das mais brabas. Mas, aconteça o que acontecer, o Irã manterá, se não ampliar, sua esfera de influência no Afeganistão. Essa intersecção entre Sul da Ásia e Ásia Central é geopoliticamente crucial para o projeto iraniano de poder, só menos crucial que o Sudoeste Asiático (que chamamos de “Oriente Médio”).

Deve-se, é claro, esperar que a Casa de Saud prossiga usando todos os truques sujos que brotem da imaginação de Bandar bin Sultan da Arábia Saudita, codinome “Bandar Bush”, para manipular os sunitas em todo o “AfPak” [Afeganistão e Paquistão como um só teatro de operações], com o objetivo de, essencialmente, impedir que o Irã projete o próprio poder.

Mas o Irã conta com um aliado chave: a Índia. Com Delhi acelerando a cooperação de segurança com Kabul, atingimos o pico no Hindu Kush; e com Índia, Irã e Afeganistão desenvolvendo seu ramo sul da “Nova Rota da Seda”, com lugar especial para a rodovia que liga o Afeganistão ao porto iraniano de Chabahar – o Afeganistão encontra-se com o Oceano Índico.

Por tudo isso, atenção a todos os tipos de interpolações de uma aliança Irã-Índia confrontada com um eixo saudita-paquistaneses. Esse eixo tem apoiado islamistas variados na Síria – com resultados nefandos; mas o Paquistão tem sido envolvido em violência terrível contra os xiitas, e Islamabad não se mostrará muito interessada em alinhamentos demasiado estreitos com a Casa de Saud no “AfPak”.

Mas aconteceu que Washington e Teerã, por sua parte, estão outra vez alinhadas (lembram 2001?) no Afeganistão; nem uma nem outra quer saber de jihadistas linha duríssima rondando por perto. Até Islamabad – a qual, para todas as finalidades práticas, perdeu toda a capacidade de influenciar os Talibã no “AfPak” – gostaria de ver os jihadistas desmanchados em fumaça.

Todos esses atores sabem que, não importa o número de forças dos EUA que permaneçam, nem quantos enxames de mercenários contratados haja, eles não preencherão o vácuo de poder em Kabul. A coisa tenderá a permanecer sombria, mas, essencialmente, o cenário aponta para as encruzilhadas da Ásia Central/Sul da Ásia, que devem permanecer como o segundo maior campo de batalha geopolítica – e sectária – na Eurásia, depois do “combo levantino-mesopotâmico”. 


NADA DE ENERGIA, DO NOSSO VIZINHO?

Tanto quanto a Índia, o Iraque também está a favor de um acordo amplo com o Irã. E pensar que Irã e Iraque poderiam ter-se engajado numa corrida armamentista nuclear silenciosa, um contra o outro, no final do século 20... e Bagdá, agora, estar aí, defendendo tão empenhadamente o direito de Teerã a enriquecer urânio. E, isso, para nem falar que Bagdá depende do Irã para comércio, eletricidade e ajuda material, naquela guerra sem tréguas contra islamistas/salafistas-jihadistas.

A Turquia também considera bem-vindo um acordo amplo com o Irã. O comércio da Turquia com o Irã só pode aumentar. O alvo é que alcance US$30 bilhões em 2015. Mais de 2.500 empresas iranianas investiram na Turquia. Ankara, absolutamente, não pode apoiar as sanções ocidentais; não faz “business-sentido”. As sanções caminham contra a política turca de expandir o comércio. Além do mais, a Turquia depende do gás natural barato importado do Irã.

Depois de desvio selvagem da antiga política de “problemas zero com nossos vizinhos”, Ankara está acordando agora para os negócios à vista, na reconstrução da Síria. O Iraque pode ajudar, usando sua riqueza do petróleo. A Turquia, pobre em energia, não pode correr o risco de ser marginalizada. Uma Síria reestabilizada significará impulso para o gasoduto de US$10 bilhões Irã-Iraque-Síria. Se Ankara jogar o jogo, pode cogitar de uma extensão – que se encaixa bem no autoproclamado posicionamento como encruzilhada privilegiada no Oleogasodutostão do ocidente para o oriente.

Resumo disso tudo é que o conflito turco-iraniano sobre o futuro da Síria quase some, se comparado com o jogo da energia e o crescimento do comércio. Isso sugere que haverá, cada vez mais, convergência entre Ankara e Teerã, na direção de encontrar-se solução pacífica na Síria.

Mas, sim, há um problema imenso. A Conferência Genebra II, dia 22/1, pode ser o último prego no caixão do projeto da Casa de Saud, de meter ‘mudança de regime’ goela abaixo de Bashar al-Assad. Mais uma vez, isso implica que Bandar Bush está a ponto de medievalizar-se completamente – com todo o espectro de execuções sumárias, degolas, explosões de suicidas e carros-bomba e o mais alucinado sectarismo, em todo o front Iraque-sírio-libanês.

Haverá, pelo menos, um sério contragolpe. Como diz Sharmine Narwani,[1] o antigo “crescente xiita” – ou “eixo da resistência” – está-se auto-organizando agora como um “arco de segurança” contra salafistas-jihadistas. E os cérebros do Pentágono que inventaram o “arco de instabilidade”, que nunca pensaram nisso!

A LOUCURA DOS MÍSSEIS... ALGUÉM SE INTERESSA?

Adultos em Washington – não se pode dizer que sejam a maioria – podem já ter visualizado os fabulosos derivativos de um acordo do ocidente com o Irã, se examinassem a aprovação da China e a possibilidade de futura ajuda iraniana para ajudar a estabilizar o Afeganistão.

Para a China, o Irã é questão de segurança nacional – como uma importante fonte de energia (além da muitas, muitas afinidades culturais entre persas e chineses desde os tempos da Rota da Seda). Ameaçar com sanções a terceiros, um país ao qual os EUA devem mais de US$1 trilhão, e com sanções do Departamento de Estado por comprar petróleo iraniano é coisa de que não se cogita, pelo menos por hora.

Quanto a Moscou, ao aparecer com uma solução diplomática para a crise das armas químicas na Síria, Vladimir Putin salvou o governo Obama, nem mais nem menos, de si mesmo, quando estava a um passo de meter-se em mais uma guerra no Oriente Médio, de consequências potencialmente cataclísmicas. Imediatamente depois, se abriu a primeira brecha, desde 1979, no Muro de Desconfiança entre EUA e Irã.

Crucialmente importante: depois de assinado o acordo nuclear provisório com o Irã, o ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov pulou na jugular: o acordo põe fim à necessidade de haver mísseis balísticos da OTAN na Europa Central – com bases de interceptação na Romênia e Polônia previstas para estar operantes em 2015 e 2018, respectivamente. Washington sempre insistiu na ficção de que os mísseis visavam a prevenir a “ameaça” iraniana.

Sem o pretexto iraniano, a justificativa para o sistema de mísseis balísticos de defesa cai por terra.

A real negociação começa mais ou menos agora, no início de 2014. Logicamente, a solução, em meados de 2014, seria o fim das sanções [2] em troca de forte supervisão do programa nuclear iraniano. Mas esse é jogo de duplos espelhos. Washington vende a ela mesma o mito de que assim estaria, de algum modo, controlando o programa nuclear iraniano, plano alternativo a um ataque “Choque e Pavor” ultra-arriscado para aniquilar vastos segmentos da infraestrutura do Irã.

Ninguém diz, mas é fácil ver os BRICS pesos-pesados, Rússia e China, informando Washington, casualmente, o tipo de armamento e material de apoio que entregariam ao Irã em caso de ataque norte-americano.

Teerã, por sua vez, gostaria de interpretar a tentativa de reaproximação como renúncia, pelos EUA, à ‘mudança de regime’, com o Supremo Líder Aiatolá Khamenei pagando o preço de trocar elementos de um programa nuclear, pelo fim das sanções.

Assumindo-se que Teerã e Washington sejam capazes de isolar os respectivos lobbies confrontacionais – tarefa titânica –, os benefícios são autoevidentes. Teerã quer – e muito precisa de – investimentos em sua indústria de energia (no mínimo, US$200 bilhões) e em outros setores da economia. O Grande Petróleo ocidental está doido para investir no Irã. A abertura econômica será parte inevitável do acordo final – e, para o turbocapitalismo ocidental, é absolutamente necessário que seja: um mercado de 80 milhões de consumidores bem educados, localização fabulosa e nadando em petróleo e gás.[3] O que haveria de errado nisso?

OBAMA: PACIFICADOR OU SÓ ENGANADOR?

Teerã apoia Assad em grande parte para combater o vírus do jihadismo – gerado em incubadora por ricos patrocinadores na Arábia Saudita e no Golfo. Assim, digam o que disserem os jornalistas de Washington, não há qualquer possibilidade de solução séria para a Síria, sem envolver o Irã. O governo Obama agora parece estar-se dando conta de que Assad é a opção menos ruim. Quem diria... há apenas três meses?

O acordo provisório com o Irã é a primeira evidência tangível de que Barack Obama está, realmente, considerando deixar sua marca de política externa no Sudoeste Asiático/Oriente Médio. Ajuda que o 0,00001% que dirigem o show podem talvez ter percebido que um presidente dos EUA, globalmente visto como bobalhão, engendra instabilidade massiva no Império e em todas suas satrapias.

O resumo de tudo é que Obama tem de respeitar seu parceiro Hassan Rouhani – que deixou bem claro aos norte-americanos que ele tem de preservar o apoio político em tempo integral que Khamenei lhe dá; é a única via para manter ao largo o muito poderoso lobby político-religioso em Teerã/Qom, que se opõe a qualquer acordo com o ex-“Grande Satã”. Quer dizer: o “Grande Satã” tem de negociar a sério e de boa fé.

Algum agente da velha realpolitik (com coração mole) diria que o governo Obama visa a um equilíbrio de poder entre Irã, Arábia Saudita e Israel. Outro agente da velha realpolitik, mas mais maquiavélico, diria que se trata de jogadas sunitas versus xiitas, árabes versus persas, para mantê-los paralisados.

Leitura mais prosaica talvez seja que os EUA-protetores-de-gangues já não existam. Muitos sabem de um poderoso lobby israelense e de outro lobby, dos petrodólares wahhabistas em Washington, quase tão poderoso quanto o primeiro; então, ninguém jamais considera que nem Israel nem a Casa de Saud têm outro “protetor”, que não sejam os EUA.

Assim sendo, doravante, se a Casa de Saud vê o Irã como ameaça, terá de operar com sua própria estratégia. E se Israel insiste em ver o Irã como “ameaça existencial” – o que é piada –, terá de lidar com a questão como problema estratégico. Se a consequência real da atual deriva é que Washington não mais lutará guerras em nome de sauditas ou israelenses, nesse caso já temos uma mudança monumental no jogo.

Xi Jinping e Vladimir Putin veem que é do interesse deles “proteger” Obama, o pacificador. Mas todos ainda pisam território escorregadio; Obama como pacificador – honrando afinal seu Prêmio Nobel – pode ser só fantasia, uma visão em espelho mágico. E Washington sempre poderá marchar para a mudança de regime em Teerã comandada pelo próximo morador da Casa Branca depois de 2016.

Mas, no que tenha a ver com 2014, muitos sinais apontam para uma deriva tectônica no mapa geopolítico da Eurásia, com o Irã, finalmente, emergindo como a verdadeira superpotência no Sudoeste Asiático, contra os desígnios de ambos – de Israel e da Casa de Saud. Vai ser (geopoliticamente) divertido. Feliz Ano Novo.”

Notas:

[1] 21/12/2013, Al-Akbar, Líbano, http://english.al-akhbar.com/blogs/sandbox/security-arc-forms-amidst-mideast-terror-0 [em tradução]
[2] http://www.niacouncil.org/site/DocServer/Extending_Hands_Unclenching_Fists.pdf
[3] 1/12/2013, Irã Deal Opens Door for Businesses, Wall Street Journal.

FONTE: escrito por Pepe Escobar, no “Asia Times Online”. O autor é jornalista, brasileiro, vive em São Paulo, Hong Kong e Paris, mas publica exclusivamente em inglês. Mantém coluna (The Roving Eye) no” Asia Times Online”; é também analista político do blog “Tom Dispatch” e correspondente das redes” Russia Today”, “The Real News Network Televison” e “Al-Jazeera”. Atigo traduzido pelo “coletivo de Vila Vudu” e publicado no portal “Vermelho”  (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=232576&id_secao=9).

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