Pepe
Escobar
GUERRA
DE NEGÓCIOS, NÃO DE BALAÇOS...
Por Pepe Escobar, no “Al-Jazeera”, de
Qatar, sob o título original “Syria’s
Pipelineistan war”. Traduzido pelo “pessoal da Vila Vudu” e postado no blog “Redecastorphoto”
NEGÓCIO ENTRE SÍRIA E
IRÃ PODE AMEAÇAR GRAVEMENTE A POSIÇÃO DA TURQUIA NA ESTRADA LESTE-OESTE DE
ENERGIA [fonte: REUTERS]
“Muito abaixo do “vulcão de Damasco” e da
“batalha de Aleppo”, as placas tectônicas do tabuleiro de xadrez da energia
global continuam a mover-se. Além da tragédia e do luto da guerra civil, a
Síria é também disputa pelo poder no oleogasodutostão.
Há mais de um ano, foi fechado um negócio
de US$10 bilhões no Oleogasodutostão, [1] entre o Irã, o Iraque e a
Síria, para construir, até 2016, um gasoduto que unirá os campos de petróleo
gigantes de South Pars no Irã – atravessando o Iraque e a Síria, com uma
possível extensão até o Líbano – e os mercados alvos de exportação (a Europa).
Ao longo dos últimos 12 meses, com a Síria
naufragada em guerra civil, não se falou do oleogasoduto. Até que a conversa
recomeçou. A paranóia suprema da União Europeia é não se deixar prender, como
refém, pela Gazprom russa. O oleogasoduto Irã-Iraque-Síria é item essencial
para diversificar os suprimentos de energia e pôr fim ao “monopólio” russo.
Mas é mais complicado que isso. Acontece
que a Turquia é o segundo maior cliente da Gazprom. Toda a arquitetura da
segurança energética turca depende do gás que vem da Rússia – e do Irã. A
Turquia sonha com tornar-se a nova China, configurando a Anatólia como o
entroncamento-encruzilhada estratégico para a exportação do óleo e gás da
Rússia e dos campos de gás e petróleo russos, Cáspio-Central-asiático,
iraquiano e iraniano, para a Europa.
Tente passar a perna em Ancara nesse jogo e
você terá problemas. Até praticamente ontem, Ancara aconselhava Damasco a fazer
reformas – e depressa. A Turquia não queria o caos na Síria. Hoje, a Turquia
está alimentando o caos na Síria. Examinemos uma das possíveis razões
ESTIVE LÁ, NAS
ENCRUZILHADAS [2]
A Síria não é grande produtor de petróleo;
suas reservas estão sumindo. Mesmo assim, até o início da guerra civil, Damasco
vendia nada desprezíveis $4 bilhões anuais em petróleo – um terço do orçamento
do governo.
A Síria é muitíssimo mais importante como
uma encruzilhada de energia [3], mais ou menos como a Turquia, mas em
menor escala. O ponto chave é que a Turquia precisa da Síria para atender sua
estratégia de energia. [4]
A parte síria no Oleogasodutostão inclui o
gasoduto AGP (Arab Gas Pipeline), do Egito a Trípoli e o IPC, de Kirkuk,
no Iraque, a Banyas – ocioso desde a invasão, pelos EUA, em 2003.
A peça central da estratégia de energia da
Síria é a “Política dos Quatro Mares” [orig. Four Seas Policy [5]]
– conceito introduzido por Bashar al-Assad no início de 2011, dois meses antes
do início do levante. É mais ou menos como uma miniusina turca – uma rede de
energia que liga o Mediterrâneo, o Cáspio, o Mar Negro e o Golfo.
Damasco e Ancara imediatamente puseram mãos
à obra – integrando as grades, unindo-as ao gasoduto AGP e, o que é crucial,
planejando a extensão do gasoduto AGP de Aleppo a Kilis na Turquia; o que
permitiria uni-lo adiante à ópera perene do Oleogasodutostão [6]
Nabucco, supondo que essa dama gorda consiga algum dia cantar (o que
absolutamente ainda não é garantido).
Damasco também já se preparava para
aproximar-se do IPC; no final de 2010, assinou um memorando de entendimento com
Bagdá para construir um gasoduto e dois oleodutos. Mercado-alvo, mais uma vez:
a Europa.
Foi quando começou o inferno. Mas mesmo
quando os levantes já estavam em andamento, o negócio de $10 bilhões do
Oleogasodutostão Irã-Iraque-Síria foi clinchado. Se concluído, transportaria
30% a mais de gás que o quase definitivamente condenado projeto Nabucco.
Hei! Aí está o xis da questão: o que alguns
chamam de Gasoduto Islâmico contorna (e deixa para trás) a Turquia.
O veredito permanece aberto sobre se esse
complexo gambito no Oleogasodutostão pode ser considerado, ou não, um casus
belli que explique que Turquia e OTAN ponham-se enlouquecidamente à caça de
Assad. Mas não se deve esquecer que a estratégia de Washington no sul da Ásia,
desde o governo de Clinton (o marido), sempre foi contornar, deixar para trás,
isolar e ferir o Irã por todos os meios necessários.
LIGAÇÕES
PERIGOSAS
Damasco, com certeza, perseguia uma muito
complexa estratégia de dois braços – ligando-se simultaneamente com a Turquia
(e o Curdistão iraquiano), mas também contornando e deixando para trás a
Turquia e incorporando o Irã.
COBERTURA EM PROFUNDIDADE DA VIOLÊNCIA EM
ESCALADA NA SÍRIA
Com a Síria presa numa guerra civil, nenhum
investidor global sequer sonharia em brincar de Oleogasodutostão. Mas, num
cenário pós-Assad, todas as opções estão abertas. Tudo dependerá do futuro
relacionamento entre Damasco e Ancara, e Damasco e Bagdá.
O petróleo e o gás terão de vir do Iraque,
de qualquer modo (além de mais gás do Irã); mas o destino final do
Oleogasodutostão sírio pode ser a Turquia, o Líbano ou a própria Síria –
exportando diretamente a partir do leste do Mediterrâneo.
Ancara está definitivamente apostando num
governo pós-Assad liderado pelos sunitas, não muito diferente do partido AKP. A
Turquia já suspendeu a exploração de petróleo que fazia em parceria com a Síria
e está às vésperas de suspender todas as relações comerciais.
As relações entre Síria e Iraque dão-se por
dois eixos entre os quais parece haver um mundo a separá-los: com Bagdá e com o
Curdistão iraquiano.
Imaginem um governo formado pelo Conselho
Nacional Sírio e pelo Exército Sírio Livre: seria definitivamente oposto a
Bagdá, sobretudo em termos sectários; sobretudo, o governo de maioria xiita de
al-Maliki vive em bons termos estratégicos com Teerã; nos últimos tempos,
também com Assad.
As montanhas alawitas [7] comandam
as estradas do Oleogasodutostão sírio na direção dos portos de Banyas, Latakia
e Tartus no Mediterrâneo leste. Há também muito gás ainda por ser descoberto –
notícia surgida de recentes explorações em Chipre e Israel [8].
Assumindo que o regime de Assad seja derrubado e empreenda alguma retirada
estratégica para as montanhas, multiplicam-se as possibilidades de alguma
espécie de guerrilha que sabote os dutos.
No pé em que as coisas estão hoje, ninguém
sabe como uma Damasco pós-Assad reconfigurará suas relações com Ancara, Bagdá e
o Curdistão iraquiano – para nem falar de Teerã. Mas não há dúvidas de que a
Síria continuará a jogar o jogo do Oleogasodutostão.
O ENIGMA CURDO
Quase todas as reservas de petróleo sírias
estão no nordeste curdo – geograficamente, entre Iraque e Turquia; o resto está
ao longo do Eufrates, rumo ao sul.
Os curdos sírios são 9% da população –
cerca de 1,6 milhão de pessoas. Embora não sejam sequer minoria considerável,
os sírios curdos já perceberam que, aconteça o que acontecer num ambiente
pós-Assad, eles estão muito bem posicionados no Oleogasodutostão, oferecendo
via direta para exportações de petróleo do Curdistão iraquiano, em teoria
contornando e deixando para trás ambas, Bagdá e Ancara.
É como se toda a região estivesse jogando
um “Bingo de Quem Contorna (e deixa para trás) Quem" [9]. Na medida
em que se possa dizer que o Gasoduto Islâmico contorna (e deixa para trás) a
Turquia, um negócio direto [10]
entre Ancara e o Curdistão iraquiano para construir dois oleogasodutos
estratégicos de Kirkuk a Ceyhan pode também ser interpretado como contornar (e
deixar para trás) Bagdá.
Bagdá, é claro, resistirá – destacando que
os dutos são nada, vazios e inoperantes, a menos que o governo receba a parte
que lhe cabe: afinal, pagam 95% do orçamento do Curdistão iraquiano.
Os curdos, tanto na Síria como no Iraque,
têm jogado com grande esperteza. Na Síria, não confiam nem em Assad nem no
Conselho Nacional Sírio. O Partido PYD – ligado ao PKK – diz, do CNS, para
desqualificá-lo, que não passa de fantoche da Turquia. E o Conselho Nacional
Curdo [ing. Kurdish National Council (KNC)] teme a Fraternidade
Muçulmana Síria.
Assim, a maioria absoluta dos curdos sírios
têm-se mantido neutros: não apoiam os fantoches turcos (ou sauditas); todo o
poder à causa pan-curda. Salih Muslim Muhammad, líder do PYD, resumiu tudo: “O
que interessa aos curdos é afirmar nossa existência”.
Isso significa, essencialmente, mais
autonomia. Exatamente o que obtiveram do acordo assinado dia 11 de julho em
Irbil, sob os auspícios do presidente do Curdistão iraquiano Masoud Barzani: o
Curdistão sírio coadministrado pelo PYD e pelo Conselho Nacional Curdo. Foi
consequência direta de o regime Assad ter optado por uma esperta retirada
estratégica.
Não surpreende que Ancara esteja em surto
de pânico. [11] – Ancara vê não só o PKK encontrando paraíso seguro na
Síria, hospedado pelos primos do PYD, mas vê, também dois semiestados curdos, de
facto, que emitem poderosos sinais na direção dos curdos na Anatólia.
Para minimizar esse pesadelo, Ancara
poderia ajudar economicamente os curdos sírios, muito discretamente – de ajuda
humanitária a investimentos em infraestrutura – usando para isso suas boas
relações com o Curdistão iraquiano.
Na visão de mundo de Ancara, nada se pode
interpor no caminho de seu sonho de tornar-se a ponte essencial de energia
entre Ocidente e Oriente. Implica relações extremamente complexas com nada
menos que nove países: Rússia, Azerbaijão, Geórgia, Armênia, Irã, Iraque,
Síria, Líbano e Egito.
Quanto ao mundo árabe em geral, já desde
antes da Primavera Árabe discutia-se seriamente um Oleogasodutostão árabe para
unir Cairo, Amã, Damasco, Beirute e Bagdá. Ele pode fazer mais para unificar e
desenvolver um novo Oriente Médio que qualquer “processo de paz”, “mudança de regime”
ou levante pacífico ou supermilitarizado.
Nessa delicada equação, o sonho de um
Grande Curdistão volta à cena. E os curdos podem ter boas razões para otimismo:
muito em silêncio, Washington parece apoiá-los, numa aliança estratégica
absolutamente sem alarde.
Claro que os motivos de Washington não são
exatamente altruístas. O Curdistão iraquiano comandado por Barzani é ferramenta
valiosa para que os EUA mantenham um pé militar no Iraque. O Pentágono jamais
admitirá, mas já há planos avançados para a instalação de uma nova base militar
dos EUA no Curdistão iraquiano – ou para transferir para o Curdistão iraquiano
a base da OTAN atualmente em Incirlik.
Essa é um dos mais fascinantes subtramas da
Primavera Árabe: os curdos encaixam-se perfeitamente no jogo de Washington em
todo o arco do Cáucaso ao Golfo.
Mais de um executivo da Chevron e da
British Petroleum já devem estar babando, ante as possibilidades que se abrem,
das triangulações entre Iraque, Síria e Turquia, com vistas a um Oleogasodutostão.
E, claro, muitos curdos também salivam abundantemente, só de pensar quantas
portas o mesmo Oleogasodutostão abre para um Curdistão Expandido.
NOTAS DE
RODAPÉ
[2] Orig. I went down to the crossroads. É
verso de “Cross Road Blues”, Robert Johnson [1911-1938], pode ser lido
em tradução ruim e ouvido cantado pelos The Doors
[4] 6/8/2012, EKEM – European Energy Policy
Observatory, em: “Syria's Energy Future After
the Upheaval”
[9] 2/8/2012, OilPrice, Daniel j. Graeber, em: “Kurds Hold the Aces in Iraqi
Oil Sector”
[10] 11/7/2012, Iraq Oil Report, Ben Lando & Staff, em: “Kurdistan begins independent crude exports”
[10] 11/7/2012, Iraq Oil Report, Ben Lando & Staff, em: “Kurdistan begins independent crude exports”
[11] 2/8/2012, Today’s Zaman, Servet Yanatma, em: “Drills aimed at PYD under
way, US cautions against intervention”
FONTE: escrito por Pepe Escobar,
no “Al-Jazeera”, de Qatar, sob o título original “Syria’s
Pipelineistan war”. Traduzido pelo “pessoal da Vila Vudu” e postado Castor Filhono blog
“Redecastorphoto”
(http://redecastorphoto.blogspot.fr/2012/08/a-guerra-do-oleogasodutostao-na-siria.html).
Um comentário:
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