[Há muitas semelhanças com o cenário brasileiro]
Por Breno Altman, Jonatas Campos e Marina Terra, no "Operamundi"
“Um dos paradigmas mais aceitos na ciência política, ao estudar comportamentos eleitorais, está na constatação que a diminuição dos abismos sociais e o fortalecimento da classe média tendem a enfraquecer o embate político-ideológico.
“Um dos paradigmas mais aceitos na ciência política, ao estudar comportamentos eleitorais, está na constatação que a diminuição dos abismos sociais e o fortalecimento da classe média tendem a enfraquecer o embate político-ideológico.
Quem for aplicar essa lógica na Venezuela, porém, dará com
os burros n’água. A disputa entre os campos chavista e antichavista se acirra
na mesma proporção em que o país se torna socialmente mais homogêneo,
alcançando o topo do ranking sul-americano de distribuição da renda.
“A politização de todas as classes sociais,
radicalizada desde a eleição do presidente Chávez, conduz a posicionamento
que vai além de interesses imediatos dos diversos setores”, analisa Jesse
Chacon, diretor da GIS XXI (Grupo de Investigação Social Século XXI). “Aqui,
esquerda e direita, governo e oposição, vão às ruas para disputar projetos
nacionais, que ultrapassam reivindicações pontuais, benefícios econômicos ou
avanços sociais.”
Participante
da rebelião militar de 1992, quando o atual presidente lançou-se na tentativa
de derrubar a IV República, Chacón era então um jovem tenente que acabou atrás
das grades junto com seu chefe. Engenheiro de sistemas e mestre em telemática,
já foi ministro das Comunicações, do Interior e de Ciência e Tecnologia no atual
governo. Com 46 anos, dedica-se a estudar a dinâmica político-social da
Venezuela.
“O ponto
central de tensão é que os proprietários dos meios de produção estão deixando
rapidamente de ser os donos do poder político, o que provoca forte reação dos
extratos mais altos e seu entorno”, ressalta. “A renda média dos 20% mais ricos
não foi afetada, tampouco seu estilo de vida, mas percebem que não detém mais o
comando sobre o Estado e a sociedade, o que lhes provoca medo e raiva.”
Nos
setores mais pobres, atendidos por amplo repertório de políticas sociais e
distributivistas, o comportamento é igualmente ditado por motivações que
extrapolam conquistas ou expectativas econômicas. A combustão dessas camadas,
tendo na melhoria de vida seu pano de fundo, determina-se também pelo esforço
do presidente em travar permanentemente batalhas por ideias e valores.
Desde o início de seu governo, mas de forma mais ampla depois do golpe de Estado em 2002, Chávez trata de ocupar o máximo de espaço nos meios de comunicação. Seu discurso é voltado, quase sempre, para identificar cada movimento de seu governo como parte de um processo revolucionário, ao mesmo tempo em que fermenta entre seus seguidores sentimento de repulsa aos adversários das mudanças em curso.
Desde o início de seu governo, mas de forma mais ampla depois do golpe de Estado em 2002, Chávez trata de ocupar o máximo de espaço nos meios de comunicação. Seu discurso é voltado, quase sempre, para identificar cada movimento de seu governo como parte de um processo revolucionário, ao mesmo tempo em que fermenta entre seus seguidores sentimento de repulsa aos adversários das mudanças em curso.
Avesso à
lógica da conciliação, o presidente fez aposta pedagógica que aparentemente
tem sido bem-sucedida: quanto maior a polarização, quanto mais cristalino o
confronto entre pontos de vista, mais fácil seria criar uma forte e mobilizada
base de sustentação. Para os bons e os maus momentos.
A
princípio, o fio condutor da pedagogia chavista foi o resgate da história e do
pensamento de Simón Bolívar, o patriarca da independência venezuelana, chefe
político-militar da guerra anticolonial contra os espanhóis no século XIX. Por
esse caminho, Chávez imprimiu ao seu projeto forte marca nacionalista, que
contrapôs aos novos senhores coloniais (os Estados Unidos) e seus aliados
internos (a elite local).
Aos
poucos, juntou-se ao bolivarianismo original a sintaxe do socialismo histórico.
Esse amálgama entre nacionalismo de raiz e valores da esquerda passou a ser
difundido amplamente como código cultural que dá cara e cor às realizações do
governo. O presidente foge, assim, da receita na moda, mesmo entre correntes
progressistas, de carimbar a política como uma questão de eficácia. Para usar o
velho jargão, Chávez é um político da luta de classes, na qual aposta para
isolar e derrotar seus inimigos.
A
oposição, animada pela predominância nos meios de comunicação, também colocou
suas fichas no enfrentamento aberto. Além das reservas midiáticas, sempre
contabilizou a seu favor forças econômicas e relações internacionais para
mobilizar as camadas médias contra o governo. Mesmo após o golpe e o locaute de
2002, no auge da polarização, os partidos antichavistas deram continuidade à
estratégia da colisão.
Classe C
Mas ambos os lados atualmente têm que levar em conta um novo fenômeno. Mais de 30% da população trocou de extrato social. Migraram dos segmentos mais pobres para o que a sociologia das pesquisas chama de classe C – mais propriamente, viraram classe média.
O campo
opositor se vê obrigado a reconhecer certos avanços no terreno social, ao
contrário do rechaço absoluto anterior. A campanha de Capriles promete
preservar as missões sociais, apesar de propor em seu plano de governo a
eliminação do FONDEN, fundo de financiamento dos programas abastecido com
dinheiro do petróleo. Além disso, modera relativamente sua mensagem, para poder
dialogar com os setores beneficiados pela V República.
Para os
governistas, também surgem novas questões. “O problema do processo é disputar
corações e mentes desse novo contingente de classe média”, afirma Chacón.
“Muitos dos que ascenderam socialmente graças às iniciativas governamentais
abraçaram os valores morais e culturais das elites, cujo modo de vida é sua
referência”. O ex-militar focaliza especialmente a preservação das aspirações
consumistas, o desapego a projetos e organizações coletivos, a negação da
identidade original de classe e, às vezes, até de raça.
As
pesquisas diversas, tantos as do GISXXI quanto dos institutos próximos à
oposição, apontam que emergiu, nos últimos anos, um grupo de eleitores
informalmente referidos como os "ni-ni". Ou seja, sem alinhamento automático com
Chávez ou com seus inimigos. A maioria de seus integrantes é parte dessas
camadas ascendentes.
Os "ni-ni"
chegam a representar ao redor de 40% dos eleitores, contra igual montante de
adeptos firmes do chavismo e 20% de oposicionistas fiéis. A esquerda, contudo,
tem colhido resultados que ultrapassam suas fronteiras, graças à combinação
entre satisfação popular com programas governamentais (especialmente o da
habitação) e o clima afetivo de solidariedade provocado pelo câncer de Chávez.
O presidente vem beirando, nas pesquisas mais confiáveis, os 60% de intenção
eleitoral para o pleito de outubro, abrindo vantagem de 15% a 30% contra
Capriles.
Esses
números indicam que os "ni-ni" estão se repartindo entre os dois polos. Apesar de
essa tendência ser favorável à reeleição do presidente, até com certa folga, a
busca dos apoios nessa fatia do eleitorado continua frenética. “Se a campanha
de Chávez reconquista uma parte maior desse setor, poderá ser construída uma
vantagem ainda mais expressiva”, destaca Chacón.
Estratégias
Um dos aspectos da estratégia para vencer resistências entre esses setores híbridos, ao que parece, é desmontar a ideia, em grande medida forjada pelos veículos de comunicação vinculados à oposição, de que Chávez pretende liquidar com a propriedade privada e colocar toda a atividade econômica nas mãos do Estado.
“O
processo aumentou o número de proprietários no país, especialmente depois que
começou a reforma agrária”, afirma o diretor da GISXXI. “O programa da
revolução se volta contra os monopólios, fortalece o Estado, mas abre espaço
para vários tipos de propriedade, de caráter privado, cooperativo ou social. O
governo precisa definir melhor o papel de cada uma dessas modalidades para
enterrar a imagem de fundamentalismo estatista que a oposição tenta vender.”
O
candidato oposicionista, por sua vez, tem problema inverso. Representante de
uma aliança formada por grandes empresários (como a cervejaria Polar, o grupo
agroindustrial Mavesa e companhia alimentícia Alfonzo Rivas, entre outros), Capriles
precisa convencer que é capaz de absorver ao menos parte das medidas que, desde
1999, favoreceram os 80% de eleitores que não estão nas classes A e B.
Seu
programa de governo não ajuda muito. Mesmo tendo abrandado suas críticas às
políticas sociais do presidente, o ímpeto privatista está presente e com força.
Não apenas fala em reduzir o Estado, reverter nacionalizações ou tirar a PDVSA
do controle estatal, mas defende explicitamente que as terras desapropriadas
dos grandes latifundiários voltem às mãos dos antigos donos. “Primeiro,
precisamos acabar com as expropriações, devemos trazer a segurança ao campo,
dar confiança a partir do governo”, afirmou Capriles em recente coletiva de
imprensa.
Qualquer
que seja o resultado, no entanto, a administração de Hugo Chávez terá
conseguido um feito que merece análise apurada de cientistas políticos. Ao
contrário do que acontece na maioria dos países, nos quais o marketing
domesticou a política e oculta a disputa de ideias para atender o gosto do
eleitor. Na Venezuela sequer as necessidades eleitorais diluem a batalha
frontal entre programas."
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