segunda-feira, 6 de agosto de 2012

"FAZER ALGUMA COISA" NA SÍRIA

José Manuel Pureza, de Portugal

“A História não é uma realidade em preto e branco. É um embuste a sua apresentação como enfrentamento entre anjos e patifes. As revoltas democráticas no mundo árabe foram sequestradas pelos jogos geopolíticos: na guerra síria, joga-se menos a democracia do que a fragilização do Irã por Israel e pela Arábia Saudita. A urgência de "fazer alguma coisa" tem décadas de resultados desastrosos, armando até aos dentes os aliados de agora que serão os patifes de amanhã.

O artigo é de José Manuel Pureza, em Portugal

A história recente do Médio Oriente é a história da falência dos impérios naquela região e a da glória e miséria da implantação do Estado moderno, laico e nacionalista por elites locais. Foi assim nos despojos do império britânico (Arábia Saudita, Iraque, Palestina) e do império francês (Líbano e Síria). Em todos esses lugares, os mandatos da “Sociedade das Nações” deram lugar a nacionalismos modernizadores que, invariavelmente, se tornaram em ditaduras sangrentas que agora explodem sob a pressão incontível das lutas pela democracia.

A Síria é um caso típico dessa trajetória. Ali, o nacionalismo secular, protagonizado pelo Partido Ba'ath, degenerou em controle dinástico pela minoria alauita e em todas as perversões das mais estúpidas ditaduras. O apoio de Moscou antes e a sedução dos Estados Unidos depois (a Síria chegou a ser um dos entrepostos de subcontratação de tortura durante a "guerra contra o terrorismo") adiaram o inadiável: a implosão da ditadura e a emergência de revoltas pela democracia.

Aqui chegados, há duas observações a fazer. A primeira é a de que a História não é uma realidade em preto e branco. É um embuste a sua apresentação como enfrentamento entre anjos e patifes. Uma análise séria exige que se reconheça que o regime de Damasco é odioso - e que as revoltas populares não são um mero complô fabricado na Virgínia - mas exige também que não se oculte que "a oposição" está longe de ser a expressão da virtude.

O “Observatório Sírio de Direitos Humanos”, citado como "fonte credível" das chacinas, é uma pessoa (Rami Abdulrahman) que vive em Coventry. Os principais dirigentes do “Conselho Nacional Sírio” são membros de “think tanks” conservadores norte-americanos como o “Council on Foreign Relations” ou a “Henry Jackson Society”. Retira isso legitimidade à luta dos sírios pela democracia? Nenhuma. Mas põe em evidência as estratégias de infantilização que pintam às opiniões públicas a guerra na Síria como algo entre imaculados e satânicos para delas obter reações emocionais.

E entra aqui a segunda observação. Lembram-se da Líbia? Lembram-se dos relatos diários de massacres sempre mais sangrentos e com mais vítimas indefesas, incluindo, como é da praxe comunicacional, "mulheres e crianças"? Deram-se conta de que, no momento em que começou a intervenção da OTAN, a contagem de vítimas foi substituída por relatos asséticos da sucessão de tomada de localidades pelos rebeldes? Deram-se conta de que as imagens de mortos foram substituídas por mapas e imagens aéreas sempre sem vítimas (salvo a meia dúzia de "colaterais" para dar mais credibilidade à coisa)? Lembremo-nos então de tudo isso quando agora nos falam de novo em chacinas unilaterais e nos dizem: "Alguma coisa tem de ser feita", que é uma forma moralizada de dizer "tem de haver uma intervenção armada contra uns e a favor dos outros".

Dir-nos-ão que não podemos permitir que os sírios sejam vítimas do bloqueamento da resposta por causa dos vetos chinês e russo na ONU. Lembremos-lhes, então, os povos da Palestina ou do Saara Ocidental e de como têm sido vítimas de décadas de vetos dos mesmos que agora rasgam as vestes pela "urgência humanitária" na Síria.

O apelo à nossa melhor humanidade, àquela que se materializa em solidariedade sem fronteiras, não pode ser um apelo a que abdiquemos da inteligência. E a inteligência obriga-nos a levar em conta dois dados essenciais. Primeiro, que as revoltas democráticas no mundo árabe foram sequestradas pelos jogos geopolíticos: na guerra síria joga-se menos a democracia do que a fragilização do Irã por Israel e pela Arábia Saudita. Segundo, que a urgência de fazer alguma coisa tem décadas de resultados desastrosos, armando até aos dentes os aliados de agora que serão os patifes de amanhã.”

FONTE: artigo de José Manuel Pureza publicado originalmente no “Diário de Notícias”, de Portugal. Transcrito no site “Carta Maior”  (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=20657).

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