Por José Luís Fiori “Já está em pleno curso uma nova corrida imperialista, entre as grandes potências, e um dos focos desta disputa é, mais uma vez, a própria África. Ao incluir a África dentro do seu “entorno estratégico”, e ao se propor aumentar sua influência no continente africano, o Brasil precisa ter plena consciência que está entrando num jogo de xadrez extremamente complicado. Porque já está em pleno curso – na 2ª década do século XXI - uma nova “corrida imperialista”, entre as “grandes potências”, e um dos focos desta disputa é, mais uma vez, a própria África. E não é impossível que as velhas e novas potências envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos da África, voltem a cogitar da possibilidade de estabelecer novas formas maquiadas de controle colonial sobre alguns países africanos, que eles mesmos criaram, depois da IIª Guerra Mundial. A África é o segundo maior e mais populoso continente do mundo: tem uma área de 30.221. 532 km2 e uma população de cerca de 1 bilhão de habitantes, 15% da população mundial. O continente inclui a ilha de Madagascar, vários arquipélagos, 9 territórios e 57 estados independentes. Os europeus chegaram à costa africana e iniciaram seu comércio de escravos negros no século XV e XVI, mas foi só no século XIX que as grandes potências europeias ocuparam e impuseram sua dominação em todo continente, menos a Etiópia. A independência africana, depois da II Guerra Mundial, despertou grandes expectativas com relação aos seus novos governos de “libertação nacional” e seus projetos de desenvolvimento. Esse otimismo inicial, entretanto, foi atropelado por sucessivos golpes e regimes militares, e pela crise econômica mundial que atingiu todas as economias periféricas na década de 70, provocando prolongado declínio da economia africana. Na década de 90, inclusive, se generalizou em alguns círculos a convicção de que a África seria um continente “inviável” e marginal dentro do processo vitorioso da globalização econômica. E de fato, naquela década, apenas 1% do fluxo dos “Investimentos Diretos Estrangeiros”, de todo o mundo, foram destinados aos 57 países africanos. Depois de 2001, entretanto, a economia africana ressurgiu, acompanhando o novo ciclo de expansão da economia mundial, igual como aconteceu na América do Sul. Essa mudança radical da economia africana se deveu, sobretudo, ao impacto do crescimento econômico da China e da Índia, que consumiam 14 % das exportações africanas, no ano 2000, e hoje consomem 27%, igual que a Europa e os Estados Unidos, que foram os antigos “donos” comerciais do continente. Na direção inversa, as exportações asiáticas para a África vêm crescendo a uma taxa média de 18% ao ano, junto com os investimentos diretos chineses e indianos, sobretudo em energia, minérios e infraestrutura. Nesse sentido, não cabe mais duvida, devido ao volume e a velocidade dos acontecimentos: a África é o hoje, o grande espaço de “acumulação primitiva” asiática, e uma das principais fronteiras de expansão econômica e política da China e da Índia. O problema é que, neste mesmo período, os Estados Unidos também aumentaram seu envolvimento militar e econômico africano, em nome do “combate ao terrorismo”, e da “proteção dos seus interesses energéticos”, sobretudo na região do “Chifre da África” e do Golfo da Guiné, que deverá estar cobrindo aproximadamente 25% das importações norte-americanas de petróleo, até 2015. E o mesmo aconteceu com a União Europeia, e em particular, com a França e a Grã Bretanha que, inclusive, participaram, neste período, de intervenções militares diretas no território africano. E a própria Rússia tem intensificando seus acordos envolvendo venda de armas e alguns projetos bilionários de suprimento de gás para Europa, através da Itália, e do deserto do Saara. A relação do Brasil com a África, durante quase todo o século XX, foi de estranhamento e submissão aos interesses das potências coloniais europeias, e à estratégia norte-americana da Guerra Fria. Foi só no início da década de 60 que essa posição mudou pela primeira vez, com a “politica externa independente”- PEI, dos governos de Jânio Quadros e João Goulart, entre 1961 e 1964, política que foi retomada durante o governo Geisel, e depois foi relaxada durante os governos neoliberais da década de 90. Só agora, no início do século XXI, o Brasil retomou e e assumiu explicitamente seu interesse estratégico na África, propondo-se irradiar sua liderança e projetar sua influência política e econômica, sobretudo na sua região subsaariana. O Brasil é o único país sul-americano que é também negro e que tem excelentes oportunidades econômicas no território subsaariano, em infraestrutura e serviços, mas também na indústria e na capacitação da sua mão de obra. Entretanto, para manter sua decisão estratégica e conquistar espaços, o Brasil tem que estar disposto e preparado para enfrentar a pesada concorrência das velhas e novas potências, como China e Índia, que têm muito maior capacidade imediata de mobilização econômica e militar. E terá que começar pela conscientização e mobilização da sua própria sociedade e, em particular, de suas elites brancas que sempre tiveram enorme dificuldade de reconhecer, aceitar e valorizar as raízes africanas e negras do seu próprio país.” FONTE: escrito por José Luís Fiori no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/?/Coluna/O-Brasil-e-a-africa-negra/29666). COMPLEMENTAÇÃO A GUERRA DO OCIDENTE CONTRA O DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA CONTINUA A UNIÃO AFRICANA, A ARGÉLIA E O MALI A GUERRA DO OCIDENTE CONTRA O DESENVOLVIMENTO DA ÁFRICA CONTINUA Por Dan Glazebrook, no “Counterpunch” “A descrição clássica da África na mídia corporativa, como enorme balaio de guerras sem fim, fome e crianças sem esperança cria a ilusão de que o continente depende completamente de esmolas ocidentais. Na verdade, é precisamente o contrário — é o Ocidente que depende de doações da África. Essas doações têm muitas e variadas formas. Elas incluem o fluxo ilícito de recursos e os lucros, que invariavelmente acabam no setor bancário do Ocidente através de uma série de refúgios fiscais (como documentado por Nicholas Shaxson em “Poisoned Wells”*). Outro mecanismo é o da extorsão da dívida, pela qual os bancos emprestam dinheiro a ditadores militares (frequentemente levados ao poder com o apoio de governos ocidentais, como o ex-presidente Mobutu, do Congo), que então ficam com o dinheiro (em geral numa conta privada do banco emprestador), deixando para o país o pagamento de juros exorbitantes numa dívida que cresce exponencialmente. Pesquisas recentes de Leonce Ndikumana e James K Boyce descobriram que 80 centavos de cada dólar emprestado saem do país que fez o empréstimo como “fuga de capital” dentro de um ano, sem que tenha bancado qualquer investimento no país; enquanto isso, 20 bilhões de dólares por ano são retirados da África em “serviços da dívida” no que são, essencialmente, empréstimos fraudados. Outra forma de doação é a pilhagem de minerais. Países como a República Democrática do Congo são destruídos por milícias armadas que roubam os recursos naturais do país e os vendem a preços abaixo do mercado a companhias ocidentais, com a maior parte dessas milícias organizadas em países vizinhos como Uganda, Ruanda e Burundi, que são por sua vez bancados pelo Ocidente, como regularmente documentado em relatórios das Nações Unidas. Finalmente, e talvez mais importante, são os preços pateticamente baixos pagos pelas ‘commodities’ africanas e pelo trabalho nas minas ou no campo, o que efetivamente equivale a um subsídio africano ao padrão de vida ocidental e aos lucros corporativos. Esse é o papel para a África que foi determinado pelos chefes da economia capitalista ocidental: fornecedora de recursos e de mão-de-obra barata. Manter o trabalho e os recursos baratos depende, primariamente, de uma coisa: garantir que a África continue subdesenvolvida e empobrecida. Caso se tornasse mais próspera, os salários aumentariam; se experimentasse desenvolvimento tecnológico, seria capaz de agregar valor a seus recursos naturais através de processos manufatureiros antes de exportá-los, forçando os preços para cima. Enquanto isso, o roubo de petróleo e minerais depende da manutenção de estados africanos fracos e divididos. A República Democrática do Congo, por exemplo — cujas minas produzem dezenas de bilhões em recursos minerais por ano — conseguiu, apenas recentemente, recolher num ano fiscal 32 milhões de dólares em impostos de mineração, por causa da guerra travada no país por milícias que recebem apoio ocidental. Vejam abaixo o primoroso documentário assinado pela repórter Aline Midlej sobre o assalto aos recursos naturais do Congo: Nova África - Episódio 6 - "A Guerra do Coltan" (Congo) from Baboon Filmes on Vimeo. Nova África – Episódio 6 – “A Guerra do Coltan” (Congo) from Baboon Filmes on Vimeo. A União Africana, estabelecida em 2002, era uma ameaça a isso tudo: um continente africano mais unificado, mais integrado seria mais difícil de explorar. De preocupação especial para os planejadores estratégicos do Ocidente são os aspectos financeiros e militares da unificação africana. No plano financeiro, o Banco Central Africano (que emitiria uma moeda única, o “dinar” lastreado em ouro) seria uma grande ameaça à capacidade dos Estados Unidos, Reino Unido e França de explorarem o continente. Se todo o comércio africano fosse conduzido em dinares/ouro, isso significaria que os países ocidentais teriam que efetivamente pagar em ouro por recursos africanos, em vez do que acontece atualmente, quando pagam com libras, francos ou dólares, que podem ser impressos à vontade em seus países de origem. As outras duas instituições financeiras da União Africana — o “Banco de Investimento da África” e o “Fundo Monetário da África” — poderiam solapar fatalmente a capacidade de instituições como o “Fundo Monetário Internacional” de manipular as políticas econômicas de países africanos através de seu monopólio das finanças. Como apontou Jean Paul Pougala, o “Fundo Monetário da África”, com seu capital inicial planejado de 42 bilhões de dólares, “deverá suplantar totalmente as atividades africanas do FMI, as quais, com apenas 25 bilhões, foram capazes de colocar todo o continente de joelhos e fazê-lo aceitar privatizações questionáveis, como forçar países africanos a trocar monopólios públicos por privados”. Ao lado desses acontecimentos financeiros potencialmente ameaçadores, existem mudanças na frente militar. A cúpula da União Africana de 2004, em Sirte, na Líbia, concordou, numa “Carta Comum de Defesa e Segurança Africana”, que incluía um artigo estipulando que “qualquer ataque contra um país africano é considerado um ataque ao continente como um todo”, um espelho da carta da própria OTAN. Isso foi seguido no ano de 2010 pela criação da “Força Africana”, com mandato para implementar a Carta. Claramente, a OTAN ia fazer uma tentativa de reverter a unidade africana pela força; o tempo estava acabando. Ainda assim, a criação da “Força Africana” representava não apenas uma ameaça, mas também uma oportunidade. Embora houvesse certamente a possibilidade de a “Força” se tornar defensora genuína da independência, resistindo ao colonialismo e defendendo a África contra agressão imperialista, também havia a possibilidade de que, manuseada da forma correta, sob uma liderança diferente, poderia se tornar o oposto — uma força indireta para a contínua subjugação neocolonial sob comando do Ocidente. O que está em jogo era — e é — muito importante. Enquanto isso, o Ocidente já tinha posto em andamento preparativos militares para a África. Seu declínio econômico, somado à ascensão da China, significava que era mais e mais difícil continuar contando apenas com chantagem econômica e manipulação financeira para manter o continente subordinado e fraco. Compreendendo claramente que seria forçado, cada vez mais, a apelar para a ação militar como forma de manter sua dominação, um documento dos Estados Unidos, publicado em 2002 pelo “Grupo de Iniciativa da Política de Petróleo Africana”, recomendou “um novo e vigoroso foco de cooperação militar norte-americana na África subsaariana, que inclua uma estrutura de comando subunificado que possa produzir dividendos significativos em matéria de proteção dos investimentos dos Estados Unidos”. Essa estrutura passou a existir em 2008, com o nome de AFRICOM. Os custos – econômicos, militares e políticos – da intervenção direta no Iraque e no Afeganistão, porém – com os custos apenas da guerra do Iraque estimados em mais de três trilhões de dólares – significavam que o AFRICOM deveria contar, primordialmente, com tropas locais encarregadas de lutar e morrer. O AFRICOM deveria ser um ente coordenador da subordinação dos exércitos africanos sob uma cadeia de comando Ocidental, o que transformou os exércitos africanos, em outras palavras, em marionetes do Ocidente. O maior obstáculo a esse plano foi a própria “União Africana”, que rejeitou categoricamente qualquer presença militar norte-americana em solo africano em 2008 – forçando o AFRICOM a instalar seu Quartel-General em Stuttgart, na Alemanha, uma mudança humilhante depois que o presidente Bush já tinha anunciado publicamente sua intenção de montar o QG na África mesmo. O pior estava por vir em 2009, quando o Coronel Kadaffi – o grande defensor de políticas antiimperialistas no continente – foi eleito presidente da “União Africana”. Sob sua liderança, a Líbia já havia se tornado o principal doador financeiro da “União Africana” e estava propondo um rápido processo de integração do continente, incluindo um exército africano único, além de moeda e passaportes comuns. Seu destino agora é claramente de domínio público. Depois de montar a invasão do país de Kadaffi com base em uma pilha de mentiras ainda piores do que as que contou a respeito do Iraque, a OTAN reduziu a Líbia a um estado falido e devastado e facilitou a tortura e a execução de seu líder eliminando, assim, seu maior oponente. Por um tempo, pareceu que a “União Africana” fora domada. Três de seus membros – Nigéria, Gabão e África do Sul – votaram a favor da intervenção militar no “Conselho de Segurança da ONU” e seu novo presidente – Jean Ping – reconheceu, rapidamente, o novo governo líbio imposto pela OTAN para denegrir e diminuir as realizações de seu antecessor. Ele ainda proibiu a assembleia da “União Africana” de fazer um minuto de silêncio depois que Kadaffi foi morto. Mas isso não durou. Os sul-africanos, em particular, rapidamente se arrependeram do apoio à intervenção e os dois presidentes, Zuma e Thabo Mbeki, criticaram a OTAN duramente nos meses seguinte. Zuma argumentou – corretamente – que a OTAN agiu ilegalmente ao bloquear o cessar-fogo e as negociações que foram exigidas pela resolução da ONU e negociadas pela UA e com as quais concordara. Mbeki foi ainda mais longe e argumentou que o “Conselho de Segurança da ONU”, ao ignorar as propostas da UA, estava tratando “os povos da África com total desdém” e que “as forças do Ocidente incrementaram seu apetite de intervenção no continente, até mesmo com o uso de forças armadas, para garantir a proteção de seus interesses, sem levar em conta nossa visão, a visão dos africanos”. Um diplomata graduado do Ministério das Relações Exteriores da África do Sul disse que “a maioria dos estados da CDSA (Comunidade de Desenvolvimento do Sul da África), em particular África do Sul, Zimbábue, Angola, Tanzânia, Namíbia e Zâmbia, que desempenharam papel-chave na luta de libertação do sul da África, não estavam satisfeitas com a maneira com que Jean Ping lidou com o bombardeio da Líbia por parte da OTAN”. Em julho de 2012, Ping foi forçado a deixar o cargo e foi substituído – com apoio de 37 países africanos – pelo doutor Nkosazana Dlamini-Zuma: ex-ministro das Relações Exteriores da África do Sul e braço direito de Thabo Mbeki – e claramente alguém que não fazia parte do grupo de entreguistas de Ping. A “União Africana” voltou ao controle das forças comprometidas com a independência genuína. Porém, a execução de Kadaffi não apenas eliminou um representante forte da “União Africana”, mas também uma peça chave da segurança na região do Saara-Sahel [no norte da África]. Usando uma mistura cuidadosa de força, desafio ideológico e negociação, a Líbia liderava o sistema transnacional de segurança que preveniu o avanço de milícias salafitas, como foi reconhecido pelo embaixador dos Estados Unidos Christopher Stevens, em 2008: “O governo da Líbia levou agressivamente a cabo operações que interromperam o trânsito de combatentes estrangeiros, com monitoramento mais rígido por ar e terra, portos de entrada, e o apelo ideológico do islamismo radical… a Líbia colabora com estados vizinhos do Saara e da região do Sahel para interromper as viagens de combatentes estrangeiros e de terroristas transnacionais. Muammar Kadaffi fechou um acordo amplamente divulgado com líderes das tribos Tuareg da Líbia, Chade, Níger, Mali e Argélia, através do qual eles abandonariam aspirações separatistas e o contrabando (de armas e extremistas transnacionais) em troca de apoio financeiro e assistência para o desenvolvimento… nossa avaliação é de que o movimento de combatentes estrangeiros da Líbia para o Iraque e o movimento na direção inversa de veteranos da Líbia diminuiu por conta da cooperação do governo da Líbia com outros países”. Essa “cooperação com outros estados” se refere à CEN-SAD (Comunidade dos Estados do Saara-Sahel ), organização lançada por Kadaffi em 1998 com vistas ao livre comércio, livre movimento de pessoas e desenvolvimento regional para seus 23 estados-membros, mas com foco principal na paz e na segurança. Ao mesmo tempo, para contrabalançar a influência de milícias salafitas, o CEN-SAD desempenhou papel fundamental na mediação de conflitos entre a Etiópia e a Eritréia, e na região do rio Mano [na fronteira da Libéria com Serra Leoa], como também nas negociações da solução duradoura da rebelião no Chade. A CEN-SAD tinha base em Trípoli e a Líbia era, sem dúvida, força dominante no grupo. Por sinal, a CEN-SAD foi fundamental para a eleição de Kadaffi como presidente da “União Africana” em 2009. A própria eficiência do sistema de segurança foi um golpe duplo para a hegemonia do Ocidente na África: não somente aproximou a África da paz e da prosperidade, mas simultaneamente eliminou um pretexto-chave para intervenção Ocidental. Os Estados Unidos estabeleceram sua própria “Parceria Trans-Saariana de Anti-Terrorismo” (TSCTP), mas como Muatassim Kadaffi (conselheiro de Segurança Nacional da Líbia) explicou a Hillary Clinton em Washington, em 2009, a “Comunidade dos Estados do Saara-Sahel, com base em Trípoli, e a Força Norte Africana tornam supérflua a missão da TSCTP”. Enquanto Kadaffi estava no poder e dirigia o sistema de segurança regional mais poderoso e efetivo, as milícias salafitas do norte da África não podiam ser usadas como “ameaça” para justificar a invasão ocidental e a ocupação para salvar nações impotentes. Para conquistar o que o Ocidente diz querer (mas não conseguiu fazer em lugar algum) – a neutralização do “terrorismo islâmico” – a Líbia tomou dos imperialistas o pretexto-chave para sua guerra contra a África. Ao mesmo tempo, impediram as milícias de cumprirem sua função histórica para o Ocidente – desestabilizar, como marionetes, estados seculares independentes (o que foi amplamente documentado pelo excelente livro “Secret Affairs”, de Mark Curtis). O Ocidente deu apoio aos esquadrões da morte salafitas na campanha de desestabilização da União Soviética e da Iugoslávia com muito sucesso, e o faria novamente na Líbia e na Síria. Com a OTAN redesenhando a Líbia como estado falido, o sistema de segurança desmoronou. Não apenas as milícias salafitas foram armadas pela OTAN, com os equipamentos militares mais sofisticados, como também tiveram cobertura para agir livremente e saquear os armamentos do governo líbio e tiveram acesso a território livre onde puderam se organizar para promover ataques através da região. A segurança das fronteiras desmoronou com aparente conivência do novo governo da Líbia e seus patrocinadores da OTAN, como mostra relatório condenatório da empresa de inteligência global “Jamestown Foundation”: “Al-Wigh era uma base estratégica importante para o regime de Kadaffi, localizada perto das fronteiras de Níger, Chade e Argélia. Desde a rebelião, a base passou a ser controlada pelos combatentes da tribo Tubu, sob o comando nominal do Exército da Líbia, e do comandante dos Tubu, Sharafeddine Barka Azaiy, que reclama: “Durante a revolução, controlar essa base era de grande importância estratégica. Nós a liberamos. Agora, nos sentimos negligenciados. Não temos equipamentos suficientes, carros e armas para proteger a fronteira. Apesar de fazermos parte do exército nacional, não recebemos salário”. O relatório conclui: “O ‘Conselho Nacional de Governo da Líbia’ e seu antecessor, o ‘Conselho Nacional Transnacional’, fracassaram na tarefa de assegurar esta importante instalação militar no sul e permitiram que grandes extensões da segurança da fronteira no sul se tornassem “privadas”, ficando nas mãos de grupos tribais que são conhecidos por suas práticas de contrabando. Como resultado, isso colocou em risco a segurança da infraestrutura de petróleo da Líbia e a segurança de seus vizinhos. Enquanto a venda e o transporte de armas da Líbia se torna uma mini-indústria na era pós Kadaffi, o grande volume de dinheiro disponível para a Al Qaeda no Magrebe Islâmico pode abrir muitas portas em uma região pobre e subdesenvolvida. Se a ofensiva liderada pela França no norte de Mali for bem sucedida em desalojar os militantes islâmicos, parece haver muito pouca chance, no momento, de impedir esses grupos de estabelecerem novas bases no ermo deserto pouco controlado do sul da Líbia. Enquanto não houver um sistema de controle estruturado na Líbia, o interior do país continuará a apresentar ameaças à segurança de todas as nações da região”. A vítima mais óbvia dessa desestabilização até agora é o Mali. A tomada do Mali pelos salafitas é uma consequência direta das ações da OTAN na Líbia, o que nenhum analista sério nega. Um dos resultados da expansão da desestabilização do Mali apoiada pela OTAN é a Argélia – que perdeu 200.000 cidadãos em uma guerra civil mortífera contra radicais islâmicos nos anos 90 –, que agora está cercada por milícias salafitas fortemente armadas em suas fronteiras do leste (Líbia) e do sul (Mali). Em seguida à destruição da Líbia e à derrubada de Mubarak, a Argélia é agora o único estado do norte da África ainda governado por um partido anticolonialista que ganhou sua independência da tirania europeia. Esse espírito independente ainda está muito em evidência nas atitudes da Argélia com relação à África e à Europa. Na questão do AFRICOM, a Argélia é uma grande apoiadora da “União Africana”, para a qual fornece 15% do orçamento, e tem um compromisso de US$ 16 bilhões com o estabelecimento do um “Fundo Monetário Africano”, o que a torna o maior contribuinte do Fundo até o momento. Nas suas relações com a Europa, no entanto, tem consistentemente se recusado a desempenhar o papel de subordinada que se espera dela. Argélia e Síria foram os únicos países da Liga Árabe que votaram contra os bombardeios da OTAN na Líbia e na Síria e a Argélia deu refúgio aos membros da família de Kadaffi que fugiram da matança da OTAN. Mas para os estrategistas europeus, mais preocupante do que tudo isso é que a Argélia – junto com Irã e Venezuela – é o que eles chamam de OPEC “linha dura”, decidida a brigar por seus bens naturais. Como um artigo recente, exasperado, no “Financial Times” explicou, “o nacionalismo das riquezas naturais” tomou conta e como resultado “o Grande Petróleo azedou na Argélia, as empresas reclamam de uma burocracia esmagadora, de medidas fiscais duras e do ‘bullying’ da Sonatrach, a empresa estatal de energia, que tem parte em quase todos os investimentos em petróleo e gás”. O texto continua e destaca que a Argélia implementou uma “taxa controversa sobre herança” em 2006 e reproduz declarações de executivos ocidentais de petróleo na Argélia dizendo que “as empresas de petróleo… já se cansaram da Argélia”. É instrutivo notar que o mesmo jornal acusou a Líbia de “nacionalismo das reservas naturais” – aparentemente, o pior dos crimes para os leitores do “Financial Times” – pouco menos de um ano antes da invasão da OTAN. Claro, “nacionalismo das riquezas naturais” significa exatamente isso – as reservas naturais de um país serem usadas primeiramente para o benefício e desenvolvimento da própria nação (e não para empresas estrangeiras) – e nesse sentido a Argélia é culpada. As exportações de petróleo da Argélia superam US$ 70 bilhões por ano, e boa parte dessa receita foi investida em gastos massivos com saúde e moradia, além de um programa de US$ 23 bilhões de empréstimo para incentivar as pequenas empresas. Realmente, o alto nível de investimento social é considerado o principal motivo pelo qual uma revolta do tipo da “Primavera Árabe” não aconteceu na Argélia nos últimos anos. Essa tendência do “nacionalismo das riquezas naturais” também foi citada em um artigo recente da STRATFOR, a empresa global de inteligência, que escreveu que “a participação estrangeira na Argélia sofreu, em grande parte, por causa das políticas protecionistas impostas pelo governo militar altamente nacionalista”. E isso era particularmente preocupante, argumentavam, enquanto a Europa está prestes a se tornar mais dependente do gás da Argélia, já que as reservas do Mar do Norte estão acabando: “Desenvolver a Argélia como grande exportar de gás natural é uma estratégia econômica imperativa para os países da União Europeia, já que a produção do Mar do Norte entra em declínio terminal na próxima década. A Argélia já é um importante fornecedor de energia para o continente, mas a Europa vai precisar de mais acesso a gás natural para compensar o declínio de suas reservas”. As reservas do Mar do Norte da Inglaterra e da Holanda devem secar até o fim da década e as da Noruega devem entrar em declínio agudo a partido de 2015. Com a Europa temendo uma superdependência do gás da Rússia e da Ásia, a Argélia – com reservas de gás natural estimadas em 4,5 trilhões de metros cúbicos, além do gás de xisto estimado em 17 trilhões de metros cúbicos – se tornará essencial, o artigo argumenta. Mas o grande obstáculo ao controle europeu dessas reservas continua sendo o governo da Argélia – com suas “políticas protecionistas”, notadamente “o nacionalismo das riquezas naturais”. Sem dizer abertamente, o artigo conclui sugerindo que um “estado instável” e falido na Argélia seria preferível a uma Argélia sob um governo independente estável e “protecionista”, notando-se que “o atual envolvimento das grandes empresas de energia da União Europeia em países de alto risco, como Nigéria, Líbia, Iêmen e Iraque, indica uma tolerância saudável da instabilidade e dos problemas de segurança”. Em outras palavras, na era da segurança particular, as “Grandes do Petróleo” não requerem mais estabilidade ou a proteção do estado para seus investimentos. Zonas de desastre podem ser toleradas, estados fortes e independentes, não. É, então, percebido como interesse estratégico da segurança energética do Ocidente ver a Argélia transformada em um estado falido, como Iraque, Afeganistão e Líbia se tornaram. Com isso em mente, é fácil ver como a política aparentemente contraditória de armar as milícias salafitas num minuto (na Líbia) e bombardeá-las no minuto seguinte (no Mali) faz sentido. A missão do bombardeio francês tem como objetivo, em suas próprias palavras, a “conquista total” do Mali, o que na prática significa expulsar os rebeldes rumo ao norte do país, gradualmente – em outras palavras, direto para a Argélia. Então, a destruição intencional do sistema de segurança do Saara-Sahel centrado na Líbia teve vários benefícios para os que queriam ver a África continuar limitada ao papel de provedor subdesenvolvido de matéria prima barata. A destruição armou, treinou e deu território às milícias inclinadas a destruir a Argélia, o único importante país rico em matérias primas do Norte da África comprometido genuinamente com a união e independência africanas. Ao fazer isso, também convenceu outros africanos de que – em contraste com a sua rejeição unânime do AFRICOM há pouco tempo – eles também precisam agora pedir a “proteção” do Ocidente contra essas milícias. Como uma operação de proteção mafiosa típica, o Ocidente faz com que a proteção seja “necessária” ao liberar as mesmas forças das quais as pessoas precisam se proteger. Agora, a França ocupa o Mali, os Estados Unidos estão estabelecendo uma nova base de aviões não-tripulados no Níger, e David Cameron está falando sobre seu compromisso com uma nova “guerra contra o terror” em seis países, e que, provavelmente, levará décadas. Porém, nem tudo vai bem no front do imperialismo. Longe disso. O Ocidente com certeza tinha esperanças de não precisar enviar seus próprios soldados. O objetivo inicial era tragar a Argélia para dentro do conflito, atraí-la para a mesma armadilha que foi usada com sucesso contra a União Soviética nos anos 80; um exemplo anterior foi o sectarismo violento promovido pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos nas fronteiras do inimigo para tentar arrastar seu alvo para uma guerra destrutiva. A guerra soviética no Afeganistão em última análise não somente fracassou, como também destruiu a economia e a moral do país no processo, e foi o fator chave por trás da autodestruição gratuita do estado soviético em 1991. A Argélia, entretanto, se recusou a cair nessa armadilha, e na rotina do bom policial e do mau policial de Obama e Hollande – a primeira “pressionou por ação” na Argélia em outubro e foi seguida das tentativas francesas de bajulação, dois meses depois – não deram em nada. Enquanto isso, sem se prender ao script, os marionetes salafitas do Ocidente, imprevisíveis, não se expandiram de sua base no norte do Mali para o norte da Argélia, como era a intenção, e sim para o sul de Bamako [capital do Mali], ameaçando derrubar um governo aliado do Ocidente que acabara de ser instalado em um golpe há menos de um ano. Os franceses foram forçados a intervir e expulsá-los para o norte em direção ao estado que era o alvo real desde o começo. Por hora, essa invasão parece ter um certo grau de apoio entre os africanos que temem os aliados salafitas do Ocidente mais que os próprios soldados ocidentais. Quando a ocupação começar a se arrastar, dando credibilidade aos guerrilheiros — e ao mesmo tempo expondo a brutalidade dos invasores e de seus aliados — veremos quanto tempo vai durar.” PS do Viomundo: *”Poisoned Wells” é um livro imperdível. Certamente o melhor que já se escreveu sobre a África e o destino dos recursos naturais do continente, que alimentam o sistema bancário-sombra do Ocidente.” FONTE: escrito por Dan Glazebrook, no “Counterpunch” em 2013. O autor é escritor especializado em política e jornalista. Ele escreve regularmente sobre relações internacionais e o uso da violência por parte do estado em políticas britânicas domésticas e internacionais. Artigo transcrito no portal “Viomundo” (http://www.viomundo.com.br/denuncias/a-guerra-do-ocidente-contra-o-desenvolvimento-da-africa-continua.html). |
segunda-feira, 16 de dezembro de 2013
O BRASIL E A ÁFRICA NEGRA
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