Por Miguel do Rosário
“Finalmente, encontrei a imagem que eu vinha buscando, há dias, para entender um paradoxo.
Por que a vitória da mídia, da direita e dos coxinhas psicóticos, no caso do mensalão, teve um resultado tão melancólico?
Como alguém pode subir ao podium, estourar um champanhe, receber uma medalha e, ao mesmo tempo, ser observado por outros como alguém que está sofrendo, sem disso ter consciência, uma derrota acachapante?
O julgamento do mensalão, da maneira como foi conduzido, noticiado e finalizado com as prisões de Dirceu e Genoíno, talvez tenha sido o canto do cisne da mídia. A sua última vitória. Última não no sentido de a mais recente, mas de derradeira. O início do fim.
Não quero me iludir ou dourar a pílula. Admito a derrota. O nosso campo conseguiu vencer a mídia em várias frentes, nos últimos anos. Por isso mesmo, o mensalão tornou-se tão importante para a mídia. Era um ponto de honra para ela vencer essa batalha. E quando falo “mídia”, refiro-me a todo um bloco de poder, um dos mais fortes no país, liderado politicamente pela grande imprensa, mas que reúne diversos setores sociais importantes, na classe média, nas elites [inclusive no STF] e até mesmo junto ao povo.
No caso do mensalão, perdemos.
E, no entanto, vencemos.
A imagem que eu, no início do post, disse ter finalmente encontrado é a cena que abre e fecha um clássico do cinema italiano: o filme “C’eravamo tanto amati”, de Ettore Escola, ou “Nós que nos amávamos tanto”.
A cena traz um paradoxo. Três amigos, dois homens e uma mulher, param um carro velho e cheio de defeitos (o volante só funciona para a esquerda) junto a uma mansão situada num bairro de ricaços, no subúrbio de Roma. Eles saem do carro e caminham ao longo da murada. Veem um homem sair da casa, vestindo um roupão, e dirigir-se à beira da piscina. O homem escala um trampolim, estica os braços e mergulha. A cena congela com o homem parado no ar.
À primeira vista, estamos diante de um vencedor. Um homem de meia idade, atlético, bonito, rico, proprietário de uma linda mansão com piscina num dos melhores bairros dos arredores da capital italiana.
Entretanto, acontece uma coisa estranha. Os três amigos que assistem a cena observam o homem com estupefação e melancolia.
“Pobre Gianni”, diz a moça, contemplando tristemente o seu ex-amigo. Os outros também fazem comentários parecidos e todos voltam ao carro, para ir embora.
Qual o mistério? Como assim, “pobre Gianni”?
É isso que o filme irá explicar. Apesar de toda a riqueza aparente, Gianni (interpretado por Vittorio Gassman) era um homem destruído moralmente. Não tinha mais alma. Para chegar aonde chegou teve que se vender a um político corrupto da direita, admirador de Mussolini, inclusive casando com sua filha, que não amava, abandonando seu grande amor, a linda Luciana, interpretada por Stefania Sandrelli.
Antes que um coxinha confunda as bolas, esclareço um ponto: Gianni não era um político de esquerda que se alia, política ou eleitoralmente, a um quadro conservador com vistas a vencer um adversário ainda mais à direita, ou formar uma coalização de governo. Gianni largou o emprego de assessor de um político de esquerda para se tornar empregado de um parlamentar de inclinações fascistas. Mais ainda: ele ingressa na própria família do parlamentar, e assume o comando de suas negociatas e golpes, adotando um discurso cínico e antipovo.
Gianni não se alia ao diabo; ele toma o seu lugar.
A sua vitória, portanto, é falsa, porque foi paga com a sua alma.
O seu antípoda é o ultrapolitizado Antonio, vivido por Nino Manfredi, um enfermeiro de hospital que, aos poucos, se vai emancipando economicamente. Conforme os anos se passam, Antonio se torna uma espécie de operário aburguesado, que vota na centro-esquerda e rechaça o radicalismo vazio de Nicola, o terceiro do grupo de amigos que haviam lutado juntos na Resistência contra o fascismo. Nicola era um professor falido e amargurado, com ideais puros. Antonio se casa com a musa do filme, Luciana, e, pese as dificuldades econômicas que ainda enfrenta, é um homem feliz.
O filme é uma grande metáfora da história política italiana. Mas a imagem que eu procurava estava ali, naquela cena paradoxal, onde um homem rico e esbelto, saltando na piscina, representa o derrotado.
A mídia, em especial a “Globo”, conseguiu prender os “mensaleiros”, mas ao custo de vender o prestígio que vinha, com muito esforço, tentando recuperar após a redemocratização.
A prisão dos mensaleiros fez os coxinhas psicóticos terem orgasmo. Sentem prazer com a desgraça dos réus, condenados num processo notoriamente político, onde tudo foi de exceção. Mas eu os vejo como derrotados, porque se submeteram a um circo vergonhoso. Chancelaram um julgamento farsesco.
O “Datafolha” pode até afirmar que a maioria apoia a prisão dos “mensaleiros”. Claro, a informação que chegou ao povo, inclusive aos simpatizantes do PT, é de que houve uma série de crimes. Em alguns casos, até houve crimes, mas não os crimes mencionados pela acusação.
Nesse sentido, outro grande derrotado é o Supremo Tribunal Federal (STF).
Confira essa fala de Ayres Brito, por exemplo, durante o julgamento do mensalão, onde ele diz que a “Companhia Brasileira de Meios de Pagamento”, a “Visanet” [hoje “Cielo”], uma empresa multinacional, é “pública” porque traz o “Brasileira” no nome… Brito diz que a “Visanet” é como a Embrapa… É simplesmente inacreditável:
[Para conseguir condenar petistas "por desvio de dinheiro público", a multinacional hoje "Cielo" é erradamente tratada no STF como "empresa pública brasileira"... Ignorância? Interesse partidário? Má fé? Despreparo?]
O julgamento está cheio de erros grotescos desse tipo. A mídia é cúmplice dos erros porque jamais os denunciou. Dezenas de comentaristas contratados pelos grandes meios de comunicação acompanharam o julgamento e ninguém teve a coragem de apontar seus erros. Erros lógicos. Erros de data. Erros de números. Erros de nome. Erros crassos sobre o funcionamento de campanhas eleitorais. Erros monumentais sobre o que são acordos políticos e partidários.
A mídia explorou todos os preconceitos populares contra a classe política e conseguiu transformar os réus nos bodes expiatórios de séculos de corrupção. Ao adotar a fórmula clássica do linchamento, porém, jogou no lixo qualquer imagem de referencial democrático que pudesse aspirar. Abandonou todos os escrúpulos éticos que acalentava após o fim da ditadura. E não obteve ganho político significativo. Ao contrário. Dirceu e Genoíno foram presos de braços erguidos. Importantes juristas e mesmo associações de magistrados se indignaram contra as ilegalidades. A classe política ainda está em estado de choque com o show de sadismo de Joaquim Barbosa e mídia na prisão intempestiva de um homem doente como José Genoíno.
Mais importante que tudo: a mídia e seus correligionários perderam eleições em 2012 exatamente em meio aos momentos mais sensacionalistas do julgamento do mensalão. E correm o risco de perder ainda mais poder em 2014, conforme já apontam as pesquisas de intenção de voto.
Além disso, o caso do mensalão vive o seu anticlímax. Agora que os réus foram presos, que a justiça “foi feita”, a novidade virá dos próprios condenados. Afinal, justa ou injustamente, eles já começaram a pagar a sua dívida com a sociedade. Não estão mortos. A decisão de proibir Genoíno de dar entrevistas, por exemplo, é só uma tentativa ridícula e desesperada de adiar o inevitável. Eles terão oportunidade de dar sua própria versão sobre o acontecido. A novidade agora não é a condenação, que já aconteceu; não é a prisão, que já aconteceu. A novidade são os erros do processo.
A novidade é que agora temos todo o tempo do mundo para analisar esses erros, destrinchá-los, denunciá-los, e apontar os perigos de uma corte suprema ultrapoderosa (a mais poderosa do mundo, segundo Canotilho, constitucionalista português) vergada à pressão da mídia.
E conforme formos ampliando o acesso a essas informações a um conjunto maior de pessoas (e não só brasileiros), estaremos cada vez menos sozinhos nessa luta.
Queremos que todos os corruptos sejam punidos, do PT, do governo, de qualquer partido. Mas exigimos uma corte suprema livre de pressões espúrias, e que os julgamentos se deem de forma limpa, isenta e objetiva, fundamentados em provas e não em ilações e preconceitos.
O julgamento do mensalão teve importância histórica, sim, porque marcou um dos momentos mais indignos do STF, e nos alertou para os perigos de uma aliança conservadora e golpista entre mídia e ministros do Supremo.
A “vitória” da mídia foi prender um homem sem uso de provas, como é o caso de Dirceu; e que usará esse fato para construir uma resposta histórica e avassaladora contra o neogolpismo judiciário que emergiu no país.
A “vitória” da mídia foi cometer a vileza inominável de infligir tortura desnecessária a um político a quem o Estado já havia torturado uma vez, como é o caso de José Genoíno.
A “vitória” da “Globo” foi terminar o ano com a menor audiência de sua história, e ainda manchada com grave denúncia de sonegação feita por um humilde blogueiro.
No fundo, eles sabem que perderam, e talvez seja essa a explicação para seu sadismo contra Genoíno e Dirceu: não aceitam que eles tenham se entregado à polícia de cabeça erguida, os punhos erguidos em sinal de vitória. E também por isso Dirceu e Genoíno ergueram os braços. Ambos sabem que a própria injustiça da qual são vítimas é o louro de seu triunfo. O que perderam em liberdade, ganharam em honra.
Deixemo-los, portanto, aos barões da mídia, aos coxinhas psicóticos e raivosos, darem seu último mergulho na piscina de suas indignidades e vilezas. Deixemo-los se comprazer com sua efêmera vitória, e comemorarem o sofrimento de um homem íntegro como José Genoíno.
Eles não poderão jamais matar a paixão com a qual travamos o bom combate político. Eles não têm tanto poder assim. Nem nos persuadirão, como às vezes tentam fazer com suas provocações, a ultrapassar o marco democrático e apelar à violência. Não. A nós, interessa a paz e a democracia. Foram eles que defenderam a ditadura, a truculência, a censura. Fomos nós que lutamos pela democracia, pela paz e pela liberdade.
Iremos vencê-los nas urnas, e esmagar seus ímpetos golpistas com leis democráticas e universalizantes. E todos os seus golpes de hoje serão cobrados com juros e correção monetária.”
FONTE: escrito pelo jornalista Miguel do Rosário em seu blog “O Cafezinho” (http://www.ocafezinho.com/2013/12/03/a-falsa-vitoria-dos-golpistas/). [Imagens do filme italiano obtidas no Google e trecho entre colchetes em azul adicionados por este blog ‘democracia&política’].
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