“Ainda que momentaneamente sem o Paraguai, o decaído MERCOSUL recuperou recentemente o dinamismo político que teve, por exemplo, em 2005, quando os quatro membros plenos de então mais a Venezuela puseram contrariedade ao consenso para formação de uma área de livre-comércio das Américas [ALCA].
Por Martín Granovsky, no jornal argentino “Página 12”
Nenhum dos quatro governos quer terminar com a UNASUL. Ninguém tem planos de liquidar o “Conselho de Estados de Latino-americanos e do Caribe”. E também os quatro projetam voltar a ser cinco, com o Paraguai incluso. Renasceu o MERCOSUL? Mas como? Não estava morto? A política internacional é, por natureza, mais selvagem que a doméstica. O poder costuma apresentar-se em seu lado mais cru. Inclusive, chega a cometer o crime da guerra, para usar a bonita síntese de Juan Bautista Alberdi. Mas em seus vaivéns e em suas surpresas, em suas marchas e contramarchas, o mundo as vezes concede a chance de reacomodar-se. E os governos, às vezes, têm a lucidez de recolher a luva.
Ainda é cedo para saber se essa interpretação acaba gozando de sustentação temporal quando aplicada ao MERCOSUL, mas não soa incoerente se considerado o resultado da cúpula celebrada na sexta-feira (12 jul) em Montevidéu. O que poderia ser uma reunião banal ou desordenada – uma enxurrada de declarações, no melhor dos casos – se transformou em uma oportunidade aproveitada para firmar doutrina e gerar ações por parte da Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela. Paraguai não participou porque seu governo estava suspenso, condição que se revogou como uma das decisões dos chanceleres e, depois, dos presidentes. “Amo o Paraguai”, não hesitou em afirmar o venezuelano Nicolás Maduro, que ocupa, pela primeira vez, a presidência pro tempore do bloco. A Venezuela foi incorporada enquanto o Paraguai esteve privado de seus direitos plenos.
Os presidentes coincidiram quanto ao resgate do direito de asilo como uma identidade regional. É uma mensagem institucional através da afirmação da vigência dos direitos humanos.
A convocatória, em consulta aos embaixadores de cada um na Espanha, Itália, França e Portugal, em solidariedade a Evo Morales pelo assédio sofrido, é uma medida dura. O chamado em consulta não é um simples trâmite informativo, mas uma forma de protesto na escala da diplomacia internacional. Não chega a um nível extremo como a retirada de embaixadores, naturalmente, quanto menos à ruptura dos nexos diplomáticos. Mas marca uma decisão coletiva sem precedentes entre os maiores países da América do Sul, que são o Brasil, a Argentina e a Venezuela, para as duas nações da colonialistas originais, Portugal e Espanha, ou para as três nações de onde vieram as maiores ondas de imigração (Espanha, Itália e Portugal), às quais se agrega a segunda maior potência dentro da União Europeia, a França.
A resposta à espionagem eletrônica massiva por parte dos Estados Unidos pareceu exitosa ao esquivar-se dos riscos. Por um lado, evitou aumentar algo que já existe e foi endossado pelo especialista Juan Gabriel Tokatlian no “La Nación”: intensificar as turbulências frente a uma decisão imperial dos Estados Unidos. Tokatlian não convocava às relações carnais, mas a um exercício racional de defesa própria. Agitar mais o ar quando o império o quer agitado ou está ele mesmo em um momento de agressividade é mau negócio para países que estão longe de ser uma hiperpotência hegemônica.
O outro risco que o MERCOSUL evitou foi o de ficar em um tipo de terceira posição entre os Estados Unidos e o terrorismo fundamentalista. Seria uma armadilha acessível, porque Washington defende sua vocação de “Grande Irmão” explicando que captura milhões de e-mails e interfere todas as comunicações de linha para prevenir-se de um ataque como o cometido pela Al Qaeda de 11 de setembro de 2001 e ajudar o mundo a prevenir-se.
Foi uma forma de posicionar-se diante do império sem dizer ao império que o fizeram. Entretanto, o MERCOSUL reagiu diante dos fatos imperiais da espionagem massiva e da advertência ao mundo sobre onde está o poder na persona de Evo Morales.
Dessa vez, se deu o milagre. Mesmo sem coordenação prévia do bloco, cada um havia preparado o terreno e todos convergiram em Montevidéu para o momento da síntese e da ação.
Cristina Fernández de Kirchner acompanhou a humilhação a Evo em todas suas alternativas e debateu o tema a partir de sua conta no Twitter e em tempo real. Intercambiou informações e indignação com o Equador, um extra-MERCOSUL que quer ser parte do bloco, como a Bolívia. A Argentina e o Equador, junto da Venezuela e do Uruguai, foram o coração da última cúpula da UNASUL em Cochabamba, a mais desvanecida desde que foi relançada a “União Sul-Americana de Nações” em 2010. Não compareceram os presidentes da Colômbia, do Peru e do Chile, três dos quatro membros da “Aliança do Pacífico” junto ao México. Tampouco, Dilma Rousseff, ainda que em seu caso, o conselheiro internacional Marco Aurélio García afirmou, ao chegar a Cochabamba, que seria seu representante pessoal na cúpula.
Evo agradeceu a velocidade de resposta da Argentina e de sua Presidenta com uma representação massiva de seu governo na festa de 9 de Julho (independência argentina) organizada pelo embaixador Ariel Basteiro. Estiveram presentes, além do próprio Evo, seu vice Alvaro García Linera, o chanceler David Choquehuanca e sua vice Leonor Arauco, ex-embaixadora na Argentina, entre outros. Foi mais que um gesto amistoso à Basteiro, que em seus nove meses de gestão se converteu em embaixador ativo e curioso, capaz de explicar, como o fez nesses dias, que parte da irritação de Evo pelo assédio à seu avião enquanto voltava da Rússia surgiu de três princípios aymaras: “Não roubar, não mentir, não ser frouxo”.
A relação entre a Argentina e a Bolívia não tem altos e baixos, ou melhor, não tem baixos, desde que os dois países firmaram o acordo de 2006, o mesmo ano em que Evo assumiu pela primeira vez. Por esse acordo, a Argentina reconheceu à Bolívia um preço superior por seu gás. Existem temas permanentes e símbolos que se assomam com frequência. Evo foi à Rússia para uma conferência de exportadores de gás. A rebelião popular dentro da crise de 2005 combinou protestos pela falta de água para a população do El Alto, à gigantesca concentração urbana próxima ao aeroporto de La Paz, e pela falta de gás para os bolivianos em meio ao auge das exportações do produto. No El Alto, acaba de cantar León Gieco dentro de um programa cultural impulsionado pela embaixada argentina.
A força política e afetiva da Argentina com a Bolívia se somou a um movimento diplomático do Brasil iniciado no último domingo, quando o jornal “O Globo” revelou que os brasileiros também haviam sido espionados pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos de maneira direta ou através de terceirizados, com plataforma digital para dados e chamadas telefônicas. Dilma não esperou nem um dia para dar as instruções ao seu chanceler, Antonio Patriota, para que pedisse explicações ao embaixador norte-americano Thomas Shannon e para que o embaixador brasileiro em Washington Mauro Vieira também as pedisse. A primeira declaração posterior de Patriota foi de satisfação, porque, disse ele, os Estados Unidos haviam se mostrado dispostos ao diálogo. Mas o resultado do diálogo não deve ter conformado o Brasil, o que é obvio, porque, de outro modo, Rousseff não teria viajado ao Uruguai e impulsionado com seus sócios do MERCOSUL um documento contra as “as ações de espionagem por parte de agências de Inteligência dos Estados Unidos” e contra “a interceptação das telecomunicações”. Tampouco, o princípio segundo o qual “a prevenção do crime assim como a repressão aos delitos transnacionais, inclusive o terrorismo, deve estar no marco do estado de direito e da estrita observância do Direito Internacional”.
O decaído MERCOSUL recuperou, assim, o dinamismo político que teve, por exemplo, em 2005, quando os quatro membros plenos de então mais a Venezuela puseram contrariedade ao consenso para formação de uma área de livre comércio das Américas.
Talvez, na reunião de Montevidéu, não se tenha falado da “Aliança do Pacífico”. Mas, ao construir uma agenda de confronto, sem delírios com os Estados Unidos, pareceu demarcar uma razão de ser. Há vários desafios pela frente. Entre eles, reconstruir a vitalidade da UNASUL. Dialogar com a Colômbia e com o Chile. Saber que o confronto de fundo não é com eles. E saber, também, que a América do Sul tem uma face comum, que é a UNASUL, mas duas faces em relação a como encarar o vínculo com os Estados Unidos, a da “Aliança do Pacífico” e a do MERCOSUL, este último com todo o potencial econômico dos três grandes e o déficit de sua integração inacabada além de um excesso de ruído inútil entre os sócios, Brasil e Argentina em primeiro lugar.
Frente a esses desafios, a desvantagem hoje é igual à vantagem: neste mundo ninguém resiste sozinho. É a razão pela qual se perdem aliados, mas também o motivo pelo qual se pode ganhá-los, seja por períodos ou por questões.”
FONTE: escrito por Martín Granovsky, no jornal argentino “Página 12”. Transcrito no site “Carta Maior”com tradução de Liborio Júnior (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22378). [Imagem do Google acrescentada por este blog ‘democracia&política’].
Por Martín Granovsky, no jornal argentino “Página 12”
Nenhum dos quatro governos quer terminar com a UNASUL. Ninguém tem planos de liquidar o “Conselho de Estados de Latino-americanos e do Caribe”. E também os quatro projetam voltar a ser cinco, com o Paraguai incluso. Renasceu o MERCOSUL? Mas como? Não estava morto? A política internacional é, por natureza, mais selvagem que a doméstica. O poder costuma apresentar-se em seu lado mais cru. Inclusive, chega a cometer o crime da guerra, para usar a bonita síntese de Juan Bautista Alberdi. Mas em seus vaivéns e em suas surpresas, em suas marchas e contramarchas, o mundo as vezes concede a chance de reacomodar-se. E os governos, às vezes, têm a lucidez de recolher a luva.
Ainda é cedo para saber se essa interpretação acaba gozando de sustentação temporal quando aplicada ao MERCOSUL, mas não soa incoerente se considerado o resultado da cúpula celebrada na sexta-feira (12 jul) em Montevidéu. O que poderia ser uma reunião banal ou desordenada – uma enxurrada de declarações, no melhor dos casos – se transformou em uma oportunidade aproveitada para firmar doutrina e gerar ações por parte da Argentina, Brasil, Uruguai e Venezuela. Paraguai não participou porque seu governo estava suspenso, condição que se revogou como uma das decisões dos chanceleres e, depois, dos presidentes. “Amo o Paraguai”, não hesitou em afirmar o venezuelano Nicolás Maduro, que ocupa, pela primeira vez, a presidência pro tempore do bloco. A Venezuela foi incorporada enquanto o Paraguai esteve privado de seus direitos plenos.
Os presidentes coincidiram quanto ao resgate do direito de asilo como uma identidade regional. É uma mensagem institucional através da afirmação da vigência dos direitos humanos.
A convocatória, em consulta aos embaixadores de cada um na Espanha, Itália, França e Portugal, em solidariedade a Evo Morales pelo assédio sofrido, é uma medida dura. O chamado em consulta não é um simples trâmite informativo, mas uma forma de protesto na escala da diplomacia internacional. Não chega a um nível extremo como a retirada de embaixadores, naturalmente, quanto menos à ruptura dos nexos diplomáticos. Mas marca uma decisão coletiva sem precedentes entre os maiores países da América do Sul, que são o Brasil, a Argentina e a Venezuela, para as duas nações da colonialistas originais, Portugal e Espanha, ou para as três nações de onde vieram as maiores ondas de imigração (Espanha, Itália e Portugal), às quais se agrega a segunda maior potência dentro da União Europeia, a França.
A resposta à espionagem eletrônica massiva por parte dos Estados Unidos pareceu exitosa ao esquivar-se dos riscos. Por um lado, evitou aumentar algo que já existe e foi endossado pelo especialista Juan Gabriel Tokatlian no “La Nación”: intensificar as turbulências frente a uma decisão imperial dos Estados Unidos. Tokatlian não convocava às relações carnais, mas a um exercício racional de defesa própria. Agitar mais o ar quando o império o quer agitado ou está ele mesmo em um momento de agressividade é mau negócio para países que estão longe de ser uma hiperpotência hegemônica.
O outro risco que o MERCOSUL evitou foi o de ficar em um tipo de terceira posição entre os Estados Unidos e o terrorismo fundamentalista. Seria uma armadilha acessível, porque Washington defende sua vocação de “Grande Irmão” explicando que captura milhões de e-mails e interfere todas as comunicações de linha para prevenir-se de um ataque como o cometido pela Al Qaeda de 11 de setembro de 2001 e ajudar o mundo a prevenir-se.
Foi uma forma de posicionar-se diante do império sem dizer ao império que o fizeram. Entretanto, o MERCOSUL reagiu diante dos fatos imperiais da espionagem massiva e da advertência ao mundo sobre onde está o poder na persona de Evo Morales.
Dessa vez, se deu o milagre. Mesmo sem coordenação prévia do bloco, cada um havia preparado o terreno e todos convergiram em Montevidéu para o momento da síntese e da ação.
Cristina Fernández de Kirchner acompanhou a humilhação a Evo em todas suas alternativas e debateu o tema a partir de sua conta no Twitter e em tempo real. Intercambiou informações e indignação com o Equador, um extra-MERCOSUL que quer ser parte do bloco, como a Bolívia. A Argentina e o Equador, junto da Venezuela e do Uruguai, foram o coração da última cúpula da UNASUL em Cochabamba, a mais desvanecida desde que foi relançada a “União Sul-Americana de Nações” em 2010. Não compareceram os presidentes da Colômbia, do Peru e do Chile, três dos quatro membros da “Aliança do Pacífico” junto ao México. Tampouco, Dilma Rousseff, ainda que em seu caso, o conselheiro internacional Marco Aurélio García afirmou, ao chegar a Cochabamba, que seria seu representante pessoal na cúpula.
Evo agradeceu a velocidade de resposta da Argentina e de sua Presidenta com uma representação massiva de seu governo na festa de 9 de Julho (independência argentina) organizada pelo embaixador Ariel Basteiro. Estiveram presentes, além do próprio Evo, seu vice Alvaro García Linera, o chanceler David Choquehuanca e sua vice Leonor Arauco, ex-embaixadora na Argentina, entre outros. Foi mais que um gesto amistoso à Basteiro, que em seus nove meses de gestão se converteu em embaixador ativo e curioso, capaz de explicar, como o fez nesses dias, que parte da irritação de Evo pelo assédio à seu avião enquanto voltava da Rússia surgiu de três princípios aymaras: “Não roubar, não mentir, não ser frouxo”.
A relação entre a Argentina e a Bolívia não tem altos e baixos, ou melhor, não tem baixos, desde que os dois países firmaram o acordo de 2006, o mesmo ano em que Evo assumiu pela primeira vez. Por esse acordo, a Argentina reconheceu à Bolívia um preço superior por seu gás. Existem temas permanentes e símbolos que se assomam com frequência. Evo foi à Rússia para uma conferência de exportadores de gás. A rebelião popular dentro da crise de 2005 combinou protestos pela falta de água para a população do El Alto, à gigantesca concentração urbana próxima ao aeroporto de La Paz, e pela falta de gás para os bolivianos em meio ao auge das exportações do produto. No El Alto, acaba de cantar León Gieco dentro de um programa cultural impulsionado pela embaixada argentina.
A força política e afetiva da Argentina com a Bolívia se somou a um movimento diplomático do Brasil iniciado no último domingo, quando o jornal “O Globo” revelou que os brasileiros também haviam sido espionados pela Agência Nacional de Segurança dos Estados Unidos de maneira direta ou através de terceirizados, com plataforma digital para dados e chamadas telefônicas. Dilma não esperou nem um dia para dar as instruções ao seu chanceler, Antonio Patriota, para que pedisse explicações ao embaixador norte-americano Thomas Shannon e para que o embaixador brasileiro em Washington Mauro Vieira também as pedisse. A primeira declaração posterior de Patriota foi de satisfação, porque, disse ele, os Estados Unidos haviam se mostrado dispostos ao diálogo. Mas o resultado do diálogo não deve ter conformado o Brasil, o que é obvio, porque, de outro modo, Rousseff não teria viajado ao Uruguai e impulsionado com seus sócios do MERCOSUL um documento contra as “as ações de espionagem por parte de agências de Inteligência dos Estados Unidos” e contra “a interceptação das telecomunicações”. Tampouco, o princípio segundo o qual “a prevenção do crime assim como a repressão aos delitos transnacionais, inclusive o terrorismo, deve estar no marco do estado de direito e da estrita observância do Direito Internacional”.
O decaído MERCOSUL recuperou, assim, o dinamismo político que teve, por exemplo, em 2005, quando os quatro membros plenos de então mais a Venezuela puseram contrariedade ao consenso para formação de uma área de livre comércio das Américas.
Talvez, na reunião de Montevidéu, não se tenha falado da “Aliança do Pacífico”. Mas, ao construir uma agenda de confronto, sem delírios com os Estados Unidos, pareceu demarcar uma razão de ser. Há vários desafios pela frente. Entre eles, reconstruir a vitalidade da UNASUL. Dialogar com a Colômbia e com o Chile. Saber que o confronto de fundo não é com eles. E saber, também, que a América do Sul tem uma face comum, que é a UNASUL, mas duas faces em relação a como encarar o vínculo com os Estados Unidos, a da “Aliança do Pacífico” e a do MERCOSUL, este último com todo o potencial econômico dos três grandes e o déficit de sua integração inacabada além de um excesso de ruído inútil entre os sócios, Brasil e Argentina em primeiro lugar.
Frente a esses desafios, a desvantagem hoje é igual à vantagem: neste mundo ninguém resiste sozinho. É a razão pela qual se perdem aliados, mas também o motivo pelo qual se pode ganhá-los, seja por períodos ou por questões.”
FONTE: escrito por Martín Granovsky, no jornal argentino “Página 12”. Transcrito no site “Carta Maior”com tradução de Liborio Júnior (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22378). [Imagem do Google acrescentada por este blog ‘democracia&política’].
Nenhum comentário:
Postar um comentário