[O engodo dos bancos, dos ricos e dos grandes sonegadores que, com a ajuda dos seus comandados PSDB, DEM, PPS e grande mídia, derrubaram a CPMF. Diziam cinicamente que foi "para o bem dos pobres"...]
“Veja” mentiu. Novidade?
Entrevista com Ladislau Dowbor
QUEM TEM MEDO DA REFORMA TRIBUTÁRIA
Por Gilson Camargo, no “Extra Classe”
Ladislau Dowbor
“Professor do Núcleo de Estudos do Futuro da PUC-SP, o economista
Ladislau Dowbor, nasceu em Banyuls, na França, em 1941, durante a Segunda
Guerra. Os pais, de origem polonesa, estavam a caminho da América, fugindo da
guerra.
Depois de formar-se em Economia Política na Universidade de Lausanne,
na Suíça, fez mestrado e doutorado em Ciências Econômicas na Escola Central de
Planejamento e Estatística de Varsóvia, Polônia, e viveu no Brasil até o golpe
de Estado de 1964.
Por sua militância de esquerda, foi preso, torturado e exilou-se na
Argélia. Trabalhou como consultor na Guiné-Bissau, Nicarágua, Costa Rica,
África do Sul e no Equador.
Anistiado, regressou ao Brasil. É autor e coautor de mais de 40 livros,
a exemplo de “Formação do Terceiro Mundo” e “O
que é capital” (ambos
da editora Brasiliense), “Aspectos
econômicos da Educação” (Ática)
e “Formação
do Capitalismo no Brasil”, publicado em diversos países e atualizado em
2010.
Seu livro mais recente, “Democracia
Econômica”, apresenta 20 eixos de mudanças para o país e
pode ser baixado na íntegra em dowbor.org.
“Eu acredito no país”,
costuma responder quando perguntado sobre a viabilidade de reformas como a do
sistema tributário.
“Acredito, porque assim como um canibal, sei que o
homem é bom na sua essência”, brincou durante seu painel “Um
novo modelo de desenvolvimento – Ética e Justiça Social”, no III
Fórum da Igualdade, em Porto Alegre, no início de abril.
Nesta entrevista, defende que só uma mudança no modelo de financiamento
das campanhas políticas pode abrir caminho para a reforma tributária. E adianta
números sobre a movimentação de recursos ilegais pelo sistema financeiro, tema
de seu próximo livro, que ainda não tem título, mas vai tratar sobre os
descaminhos do dinheiro no país.
“Extra Classe” – A
aprovação do Código Tributário Nacional, em 1966, foi a última alteração no
sistema de arrecadação de impostos do país. Quase meio século depois, quais são
os reflexos dessa reforma?
Ladislau Dowbor – O
código de 1966 é aprovado como parte de um conjunto de medidas que consolida a
concentração de renda no país. Trata-se da mesma lógica do arrocho salarial
promovido com o golpe de 1964. Durante os anos 1950, expandem-se no Brasil as
empresas multinacionais, com particular importância do automóvel.
No país pobre da época, havia a opção de reformas de base, com aumento
do salário mínimo e reforma agrária, o que expandiria o mercado interno
popular. E havia a opção inversa, de concentração maior ainda da renda.
A primeira opção geraria mais mercado de bens populares, ou
bens-salário. A segunda geraria maior mercado de luxo, expandindo a classe
média e o consumo do tipo apartamento/carro/ eletrodomésticos.
Essa última foi a opção imposta, e a lógica da reforma tributária foi
de desonerar as classes abastadas para que pudessem comprar os produtos sofisticados
produzidos pelas multinacionais. Com isso, os instrumentos distributivos da
tributação, como uma elevada alíquota de Imposto de Renda, bem como impostos
sobre a fortuna, sobre herança e sobre a terra foram ignorados em proveito de
tributos indiretos embutidos no preço dos bens que compramos.
Definiu-se, assim, a principal característica do sistema tributário
nacional, que permanece até hoje, que é dos pobres pagarem proporcionalmente
mais impostos do que os ricos, e de se abandonar a visão redistributiva dos
impostos, que foi, por exemplo, o fator principal do sucesso do modelo de
desenvolvimento europeu.
“Extra Classe” – Por que é
difícil promover nova reforma tributária? Que interesses estão em jogo e qual a
relação dessa agenda com o sistema político-partidário?
Dowbor – A dificuldade maior reside no modelo de
financiamento das campanhas políticas. Uma das heranças mais pesadas da era FHC
[PSDB] foi a autorização, a partir de 1997, do financiamento corporativo das
campanhas. Isso elevou fortemente os custos de uma eleição.
Em texto recente, Alceu Castilho (jornalista,
autor do livro “Partido
da Terra”, Ed.
Contexto, que revela o percentual do território brasileiro que está nas mãos de
políticos) afirma que existe uma bancada da “Friboi” no Congresso, com 41
deputados federais eleitos e sete senadores. Dos 41 deputados financiados pela
empresa, só um, o gaúcho Vieira da Cunha, votou contra as mudanças no Código
Florestal.
O próprio relator do Código, Paulo Piau, recebeu R$ 1,25 milhão de
agropecuárias, de um total de doações para a sua campanha, que foi de R$ 2,3
milhões. A conclusão a que Castilho chega é que a “Friboi” não patrocinou essas
campanhas para que eles votassem contra os interesses da empresa, que
evidentemente é a favor das mudanças no Código Florestal, pois a plantação de
soja empurra os rebanhos de gado para o Norte, para a Amazônia, o que interessa
à empresa.
Ou seja, com o financiamento corporativo [de FHC-PSDB], temos uma bancada
ruralista, da grande mídia, das montadoras, dos grandes bancos, das
empreiteiras, e temos de ficar à procura de uma bancada do cidadão. Essa
deformação maior do próprio núcleo de aprovação das leis torna difícil, na
atual composição do Congresso, e enquanto não se instituir o financiamento
público e controlado das eleições, fazer qualquer modificação tributária que
seja do interesse da população em geral.
“Extra Classe” – Quais
diretrizes devem orientar uma reforma tributária voltada para os interesses da
sociedade e para os princípios da justiça tributária?
Dowbor – As diretrizes de uma reforma decente são bastante
claras. O objetivo geral é de se assegurar que o dinheiro público seja
utilizado de maneira produtiva, estimulando as atividades que promovem o
desenvolvimento equilibrado, e taxando as que são mais prejudiciais. Nesse
sentido, busca-se desonerar as atividades que geram emprego, por exemplo, e a
folha de pagamento em geral. Mas também se trata de taxar as atividades
especulativas financeiras.
O melhor imposto que havia no Brasil, a CPMF, taxava essencialmente as
movimentações financeiras dos grandes intermediários, era simples de cobrar e
favorecia o financiamento da saúde pública, tendo, portanto um impacto
redistributivo.
Outro princípio é de se assegurar um peso maior aos impostos diretos
progressivos, como o IR com alíquota parecida com as dos EUA e Europa,
reduzindo-se o peso relativo dos impostos indiretos (sobre bens de consumo), que oneram proporcionalmente mais os
pobres.
Um terceiro princípio está ligado à tributação sobre a riqueza familiar
acumulada como, por exemplo, o imposto sobre a fortuna na França, que é pago
pelos muito ricos e permite financiar o RMI, renda mínima dos mais pobres.
Um quarto princípio consiste em tributar as chamadas externalidades
negativas. Uma empresa que emite dióxido de carbono está gerando impactos
climáticos, poluindo o meio ambiente e gerando doenças, mas não paga pelas
emissões.
Na Austrália, por exemplo, as maiores empresas pagam uma taxa fixa por
tonelada de dióxido de carbono que emitem, o que as estimula a instalar filtros
e a pesquisar formas mais limpas de produção.
“Extra Classe” – Como
explicar, para não iniciados, por que o país precisa da reforma?
Dowbor – De forma geral, transita pelo governo um terço do
PIB do país, hoje 34% da totalidade da produção de bens e serviços.
Essa carga tributária é moderada e há uma correlação rigorosa entre o
tamanho do imposto e o nível de desenvolvimento: quanto mais pobre o país,
menor a carga tributária, piores são os serviços públicos, o que por sua vez
trava o desenvolvimento.
Sai mais barato para a população ter um sistema público de transporte
de massa do que ter de tirar diariamente o carro da garagem e enfrentar os
engarrafamentos.
Nos Estados Unidos, se gasta US$ 7,3 mil por pessoa por ano com saúde,
dominantemente com gastos privados, e resultados pífios, enquanto no Canadá
vizinho, onde se gasta cerca de US$ 3,2 mil com sistema público, os resultados
são incomparavelmente melhores.
Assim, produzir meias e bonecas Barbie é muito mais produtivo com um
sistema empresarial privado, mas saúde, educação, cultura, segurança e outros
serviços essenciais para a nossa qualidade de vida funcionam melhor e tornam-se
mais baratos para todos quando são assegurados com sistemas públicos, como é o
caso na Inglaterra, na França e em outros países que avançaram na qualidade de
vida.
O mais produtivo é gerar um esforço de informação para a população. Os
grupos mais ricos, que não querem mexer no imposto, colocam por toda parte os
“impostômetros”, mas não vemos em nenhum lugar um “lucrômetro” [nem o "sonegômetro"].
Temos pela frente um grande esforço didático, no sentido de se mostrar
que não se trata do tamanho do imposto, mas sim de quem paga, sobre que
atividades, e com que uso final dos recursos.
“Extra Classe” – É viável
alterar o sistema tributário sem promover reformas em outros setores?
Dowbor – Uma condição necessária para a reforma tributária
é a difusão de informação honesta sobre como funciona o sistema atual, e porque
ele favorece os mais ricos e, frequentemente, os menos produtivos.
O objetivo é o que se chama normalmente de “qualidade do imposto”. Com
a mídia que temos, hoje controlada por um oligopólio de quatro grupos, a
informação é sistematicamente deformada.
Por exemplo, quando foi abolida a CPMF, a revista “Veja” apresentou
uma capa de um leão com boné de Papai Noel dizendo que o Fisco estava
devolvendo R$ 80 bilhões à população. Evidentemente, não se tratava de
devolução nenhuma e sim da desoneração dos grandes bancos, que deixariam de
pagar o imposto que incidia essencialmente sobre transações financeiras.
“Extra Classe” – A lavagem
de dinheiro é uma variável a ser combatida antes da reforma tributária?
Dowbor – Sim. Outro eixo de iniciativas paralelas à
reforma tributária tem a ver com o controle dos recursos ilegais. Com a crise
financeira mundial gerou-se um conjunto de atividades de busca de reforma
institucional do sistema de intermediação, em particular dos grandes bancos.
Os primeiros resultados mostram que o estoque de dinheiro ilegal, fruto
de evasão fiscal, lavagem de dinheiro de drogas, de comércio ilegal de armas e
de diversas formas de corrupção, é da ordem de US$ 21 trilhões a US$ 32
trilhões de dólares, equivalente a algo entre um terço e metade do PIB mundial,
sob controle e gestão dominante de bancos americanos e britânicos, além dos
tradicionais da Suíça e Luxemburgo.
Os dados levantados na pesquisa da “Tax Justice Network” mostram
que se trata, no caso do Brasil, de um provável volume de US$ 520 bilhões, ou
seja, cerca de 25% do PIB brasileiro.
“Extra Classe” – Qual o
custo para a sociedade e como combater essa subeconomia criada pelo sistema
bancário para se proteger?
Dowbor – Essa ilegalidade e fraudes por parte dos grandes
bancos internacionais, que em nome de preservar a privacidade dos seus clientes
asseguram fluxos seguros e secretos de dinheiro ilegal, penalizam os pagadores
honestos, em particular os assalariados cujos rendimentos são declarados pelos
empregadores, e desoneram as grandes fortunas, e em particular os
intermediários financeiros.
Um elemento muito positivo nesse quadro de gradual construção de um
marco regulatório e de busca de soluções mais adequadas é a aprovação em maio
de 2012 da “Lei da Transparência”, que obriga todas as entidades públicas a
produzir as informações sobre todas as suas atividades.
É um primeiro passo importantíssimo, que deve melhorar muito a redução
do sistema de corrupção, mas falta evidentemente evoluir para sistemas
transparentes no setor privado, em particular na linha da “disclosure” hoje
demandada por diversos governos, para que a população, ou pelo menos os bancos
centrais, saibam qual é o grau de desequilíbrio financeiro que os grandes
bancos estão gerando.
“Extra Classe” – O senhor
tem reafirmado que o país precisa sair da atual estrutura tributária regressiva
– que, ao invés de captar dos mais ricos para repassar aos mais pobres na forma
de serviços e assim dinamizar o conjunto da economia, cobra mais imposto dos
assalariados – e adotar um sistema distributivo. O que isso significa?
Dowbor – A deformação do nosso sistema torna-se aparente
ao compararmos os impactos do imposto sobre o coeficiente GINI, que mede a
desigualdade de renda. O resultado final é a fragilidade financeira do Estado e
a dificuldade de exercer uma política redistributiva.
O contraste com os países desenvolvidos é evidente. Enquanto na União
Europeia, depois dos impostos, o coeficiente GINI melhora em 32,6%, na média da
América Latina melhora em apenas 3,8%, o que, com o nível de desigualdade
existente, é particularmente grave.
A mesma deformação se apresenta, com algumas variações, para os
diversos países da região. Acrescente-se que o sistema financeiro comercial não
cumpre as suas funções de fomento.
A financeirização das atividades econômicas levou à generalização das
atividades especulativas e do rentismo, com particular gravidade no caso do
Brasil.
Com a fragilidade das finanças públicas, o desvio do uso das poupanças
privadas pelo sistema bancário comercial, e a passividade dos bancos centrais
na regulação do sistema de intermediação financeira – a herança do princípio da “autonomia do Banco Central” – orientar
os recursos em função das necessidades do desenvolvimento torna-se um dos
principais eixos de enfrentamento.
“Extra Classe” – Como
reverter a relação entre a tributação regressiva e a desigualdade social, que é
uma característica de grande parte das economias latino-americanas?
Dowbor – Após a aprovação de cláusulas mais democráticas
nas leis dos países latino-americanos, a exemplo da reação pendular aos
desmandos das ditaduras militares, o embate mais forte está se dando em torno
da inevitável reforma tributária.
Ter políticas tributárias regressivas na região mais desigual do
planeta é particularmente absurdo e explica, inclusive, a persistência da
própria desigualdade.
Na América Latina, o imposto direto (em particular o imposto de renda que melhor permite progressividade
segundo a riqueza e a renda) é da ordem de 5,6%, quando representa 15,3%
nos países da “Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Econômico” (OCDE).
Não é surpreendente que a pobreza dos países coincida com a baixa
participação dos impostos diretos: é resultado do poder dos mais ricos de
impedir a tributação que poderia visá-los. É de se notar, também, a
fragilidade da carga da seguridade social nos países mais pobres, ainda que
constantemente denunciada como “excessiva” na mídia conservadora.
O resumo da questão é simples: os
privilegiados querem guardar os seus privilégios, ainda que a sua manutenção
trave o desenvolvimento do conjunto. A tributação, no entanto, é essencial à
continuidade das políticas sociais.
“Extra Classe” – A reforma
tributária implica mudança na distribuição de renda e no modelo de
desenvolvimento do país, em renúncia fiscal e impactos na Previdência. Como
equacionar isso?
Dowbor – O Brasil instituiu, desde 2003, uma política de
sistemática redistribuição de renda. É um gigantesco avanço, com cerca de 40
milhões de pessoas tiradas da miséria, dinamização do consumo na base da
sociedade, o que, por sua vez, reativou a economia e gerou mais de 15 milhões
de empregos formais, criando uma dinâmica qualificada de círculo virtuoso.
No entanto, com cerca de 15% dos recursos do Estado sendo diretamente
redistribuídos para a sociedade sob forma de previdência, bolsa-família e
outros mecanismos, a carga tributária líquida disponível para o Estado situa-se
em torno de 21% do PIB, o que é relativamente limitado para um conjunto de
atividades, em particular de fornecimento de serviços sociais públicos e de
investimento em infraestruturas.
É importante notar que uma tributação mais sólida das atividades de
especulação financeira obrigaria os capitais parados em atividades rentistas a
buscar aplicações produtivas na economia, o que tenderia a estimular mais as
atividades.
Voltamos sempre ao mesmo princípio básico, de se tributar melhor os
mais ricos, os rentistas financeiros que ganham sem produzir, os recursos
acumulados em paraísos fiscais, para orientar esses recursos para reforçar as
políticas redistributivas.”
FONTE: entrevista com Ladislau Dowbor realizada por Gilson Camargo, no “Extra Classe”. Transcrita no portal “Viomundo” (http://www.viomundo.com.br/denuncias/ladislau-dowbor-sistema-tributario-injusto-e-heranca-do-golpe-de-64.html). [Trechos entre colchetes adicionados por este blog 'democracia&política'].
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