Por Eric Nepomuceno
“Na sua volta após a licença médica, a presidente surpreendeu. Primeiro, trocou seu inócuo ministro da Fazenda, Hernán Lorenzini, por Axel Kicillof (foto acima).
Foram muitos dias longe e fora da luz dos holofotes. Pouco mais de quarenta. Mas quando chegou a hora de voltar, Cristina Kirchner resolveu mostrar que voltou com tudo.
Antes dessa ausência, aconteceram duas coisas. Primeiro, a derrota inegável nas eleições legislativas de outubro.
E segundo, uma operação na cabeça, para sumir com um edema cerebral, cuja causa permanece nas brumas da fase anterior – aquela em que não se dizia nada, em que todos no governo eram uma rara mescla de prepotência e autossuficiência.
Da operação cerebral e suas causas, só Cristina, seus médicos e os íntimos mais íntimos saberão dizer.
Da derrota nas urnas, restam claras ao menos duas coisas.
Primeiro: a aprovação popular da presidenta argentina anda bem abaixo, ou andou, do que ela esperava. Embora seus candidatos a renovar mandatos de deputado e senador tenham obtido, no total, a maioria das vagas, é fato que cerca de 70% do eleitorado preferiu espalhar seus votos na oposição. E ela sofreu contundente derrota na província de Buenos Aires, que reúne 40% do eleitorado nacional.
Segundo: ficaram definitivamente sepultadas as possibilidades de que ela se lance como candidata a um terceiro mandato presidencial. Com isso, se aprofundou uma incógnita que já se desenhava, claramente, no horizonte imediato: quem seria escolhido para sucedê-la e levar adiante um processo iniciado há dez anos, quando seu falecido marido, Néstor Kirchner, se elegeu presidente?
Se do lado do governo o panorama é confuso e complexo, resta um tênue consolo: a oposição, lá, bem se parece com a de cá. Não há nenhuma figura de peso, nenhuma proposta concreta e viável de alternativa para o modelo vigente. No balaio de gatos que é o sistema partidário argentino, com um sem fim de sublegendas, apenas dois ou três têm presença e peso em escala nacional. E tirando a sublegenda “Frente para a Vitória”, que responde diretamente ao kirchnerismo dentro do “Partido Justicialista” (nome oficial do peronismo), nem os socialistas e menos ainda a “União Cívica Radical” mostraram desempenho convincente nas últimas eleições. O resto são grupos, agrupações, legendas e sublegendas de alcance apenas local e, na melhor das hipóteses, regional. Dito assim, pareceria que o cenário para que Cristina Kirchner controle a própria sucessão e assegure a manutenção, ainda que parcial, de seu projeto político [estaria favorável a ela].
A realidade, porém, é outra. Seu governo enfrenta desgaste marcante e o próprio processo kirchnerista, depois de dez anos, dá claras mostras da necessidade de uma série de ajustes e correções. A resposta das urnas, nas recentes eleições parlamentares, serviu de confirmação desse mal-estar. O próprio estilo pessoal da presidente, pouco dada ao diálogo e à negociação, propensa a uma formidável centralização de decisões – inclusive as mais corriqueiras – contribuiu, e muito, para esse mal estar visível.
Pois agora, na sua volta após a licença médica, a presidente surpreendeu.
Primeiro, assumiu a realidade: retirou seu inócuo ministro da Fazenda, Hernán Lorenzini, e pôs em seu lugar Axel Kicillof, que ocupava uma secretaria nacional, mas era quem, de fato, ditava as regras do jogo. Nomeou, para a chefia de Gabinete – que corresponde à nossa Casa Civil – o governador da província do Chaco, Jorge Capitanich. E afastou o todo-poderoso secretário de Comércio Interior, o polêmico Guillermo Moreno, que também funcionava como uma espécie de ministro-paralelo da Fazenda. Houve outras mudanças, da presidência do Banco Central ao ministério da Agricultura, mas essas três – a saída de Moreno e, muito especialmente, a chegada de Capitanich e Kicillof – dão a medida da extensão do que está acontecendo.
Kicillof é uma espécie de pequeno gênio da economia. Defendeu o seu doutorado com as notas mais altas da história da Universidade de Buenos Aires. De esquerda declaradamente, é da linha keynesiana. Capitanich é jovem, absolutamente leal a Cristina (como antes foi a Nestor) Kirchner, tem fama de trabalhador. Também de esquerda, é considerado mais pragmático que Kicillof. Nas mãos da dupla se concentra, a partir de agora, não apenas o poder maior (além, claro, de Cristina, que continua soberana), mas também a condução da máquina do cotidiano governamental.
Se Kicillof assusta o empresariado e os ruralistas, Capitanich serve como paliativo. Já anunciou que vai conversar com todo mundo, a começar pela oposição (Cristina, a bem da verdade, não conversa nem com os aliados).
Um dos primeiros desafios da dupla é encontrar meios eficazes para controlar a espiral inflacionária, que já atingiu a casa dos 25% anuais e não para de pressionar. Guillermo Moreno, o defenestrado, foi-se embora levando na bagagem de pecados o de ter manipulado os índices oficiais de inflação. Outro é recompor as reservas em divisas, que despencam com velocidade assombrosa. É bem verdade que parte desse desmoramento se deve ao fato de o país ter honrado seus compromissos com credores internacionais. Mas, seja como for, dos 48 bilhões de dólares que existiam em fevereiro de 2010, restam pouco mais de 33 bilhões.
A tarefa que os dois têm pela frente é qualquer coisa menos fácil. Mas, ao menos para Capitanich, o prêmio em caso de êxito é formidável: tornar-se o favorito de Cristina para a sucessão. Ganha a projeção nacional que não tinha, e se mostra como gestor altamente capacitado. Se der errado, nada muda: afinal, o quadro já não era nada bom.”
FONTE: escrito por Eric Nepomuceno no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Argentina-comecar-de-novo/6/29670).
COMPLEMENTAÇÃO
OS 30 ANOS DA DEMOCRACIA ARGENTINA
Cristina comemora esses 30 anos com uma democracia ainda instável, ameaçada desta vez por mobilizações de polícia das províncias, com reivindicações econômicas.
Por Emir Sader
"A Argentina comemora os 30 anos de retorno à democracia. Poucos países têm tanto a comemorar como a Argentina, porque poucos países foram tão brutalmente avassalados pelo terror da ditadura militar.
A Argentina moderna foi marcada pelos governos peronistas – como o Brasil, pelos getulistas. Desde a derrubada do Perón, em 1945, a história do país não deixou de ser pautada pelas marcas deixadas pelo peronismo. Até agora, 80 anos depois do começo da ascensão da liderança do Perón, a força preponderante no país é o peronismo, qualquer que seja a fisionomia que ele tenha.
O golpe militar de 1976 derrubou um governo peronista, o de Isabelita Peron, mas com profundos enfrentamentos dentro do próprio peronismo, com os “Montoneros” – organização guerrilheira constituída a partir da “Juventude Peronista”.
Na redemocratização. o peronismo pagou o preço do governo da Isabelita e foi eleito Ricardo Alfonsín, dirigente do Partido Radical. Se foi o primeiro governo civil depois da ditadura, foi, ao mesmo tempo, como o governo de Sarney no Brasil, vítima da crise da dívida e da inflação, como sua herança.
Alfonsín não conseguiu terminar o governo, sob forte assédio do sindicalismo peronista e da hiperinflação. O peronismo voltou, agora com a cara neoliberal de Carlos Menem, que ocupou a década de 1990 com demagógica política de paridade entre o dólar e o peso, que implodiu a economia argentina e provocou a maior crise política e social que o país já tinha vivido.
Os Kirchner, Nestor e Cristina, representam o melhor momento da Argentina, nestas três décadas de redemocratização. Retomada do crescimento econômico, estabilidade e continuidade política, recuperação do desastre social da crise do começo do novo século.
São 30 anos como a Argentina nunca tinha vivido. O governo de Perón, iniciado em 1945, foi truncado pelo golpe militar de 1955. Um governo radical foi derrubado em 1966. Perón voltou a governar em 1973, mas o golpe de 1976 recolocou no poder uma ditadura militar.
Cristina comemora esses 30 anos com uma democracia ainda instável, ameaçada, desta vez, por mobilizações de polícia das províncias, com reivindicações econômicas, mas atitudes de sublevação, combinadas com saques em supermercados.
A oposição se aproveita da situação para desgastar mais o governo, mas sua tática é a de sangrar o governo até as eleições de 2015, quando espera poder chegar unida e fazer frente ao candidato de Cristina, nome ainda por definir.”
FONTE da complementação: escrito pelo cientista político Emir Sader no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/?/Blog/Blog-do-Emir/Os-30-anos-da-democracia-argentina/2/29778).
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