Do site “Resistir.info”, de Portugal
QUATRO SINAIS DE QUE O NEOLIBERALISMO ESTÁ (QUASE) MORTO
Por Sameer Dossani
“Embora Margaret Thatcher já não esteja entre os vivos, sua ideologia permanece. Essa ideologia – conhecida hoje como neoliberalismo, "fundamentalismo de mercado livre" na frase cunhada por George Soros – é singularíssima. Além das crenças religiosas, não há qualquer exemplo de uma ideologia que tenha sido tão amplamente refutada e ainda assim mantenha uma aura de respeitabilidade.
A premissa básica do neoliberalismo – que "mercados livres" conduzem a melhor crescimento, mais prosperidade e mesmo mais igualdade – sempre foi ficção. Como Ha-Joon Chang, economista de Cambridge, reiteradamente apontou, não há tal coisa como um mercado livre. Nem há qualquer exemplo de um país que se tenha desenvolvido seguindo os dogmas neoliberais da privatização, liberalização e cortes orçamentais. Ao invés disso os países tradicionalmente têm utilizado uma combinação de subsídios, tarifas e investimento financiado por dívida para impulsionar indústrias e aproveitar sua vantagem comparativa para a produção de mercadorias mais avançadas.
Apesar da história, neoliberais argumentam que só os mercados deveriam determinar coisas como salários e que as corporações e seus proprietários deveriam poder operar como quisessem. Países desenvolvidos que adotaram dogmas neoliberais depois de 1980 viram os salários estagnarem quase tão rapidamente quanto os lucros das corporações disparavam.
No mundo em desenvolvimento, era muito pior. A África sofreu duas décadas de estagnação econômica como resultado direto de ser forçada a seguir essas políticas, com os latino-americanos e asiáticos a fazerem não muito melhor. A década passada viu alguma melhoria, mas a comunidade global ainda está bem atrás de onde deveria estar em termos de erradicar a fome e doenças evitáveis.
Mas a era neoliberal pode, finalmente, estar a aproximar-se do seu fim há muito esperado. Eis porque:
1) O FMI ADMITIU QUE CORTES ORÇAMENTAIS NEM SEMPRE SÃO A RESPOSTA.
O FMI, durante mais de três décadas, forçou países a reestruturarem suas economias a fim de se alinharem aos dogmas neoliberais. Eles, em particular, obrigaram países endividados a cortarem orçamentos antes de poderem tomar emprestado junto a mercados de capitais para reembolsar credores. As frases que burocratas e políticos inventaram para vender essa ideologia são agora clichês: "Governos não podem gastar mais do que ganham", "Todos nós precisamos apertar os cintos" etc, etc. “Com o corte da despesa do governo”, continua a estória, “os países abrem espaço para aumento dos gastos do setor privado e a economia cresce”.
Embora estudos anteriores do FMI tenham chegado a conclusões semelhantes, só em Janeiro de 2013 o economista chefe do FMI publicou o que equivale a um "mea culpa". Descobriu que diminuição do investimento público é realmente um caminho muito bom para prejudicar perspectivas de desenvolvimento econômico, ao invés de aumentá-las. Uau!
E há outra faceta na estória. Durante os últimos anos, decisores têm citado um documento de economistas de Harvard que sublinham ostensivamente os perigos de países tomarem demasiado emprestado a fim de financiar despesas públicas. O documento sugere, especificamente, um ponto de ruptura – quando a dívida atinge os 90% do PIB – para além da qual as economias sofreriam devido às suas despesas excessivas. O documento tem sido citado por autoridades públicas de todo o globo a fim de justificar cortes orçamentais. Mas verificou-se que as conclusões do documento resultavam de uma série de erros, um dos quais foi esquecerem-se de atualizar um cálculo numa folha de Excel. Quando os dados corretos são colocados no lugar, as conclusões mais ou menos desaparecem. Duplo uau!
2) A CONFERÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DE DOHA ESTÁ MORTA
Em Novembro de 2001, a “Organização Mundial do Comércio” lançou a sua "Conferência do desenvolvimento de Doha" ("Doha development round"). Apesar do seu nome, a conferência de Doha acerca de tudo menos desenvolvimento. Em lugar alto na agenda, havia coisas como remover proteções sociais e ambientais, eliminar subsídios para agricultores pobres e assegurar que grandes companhias farmacêuticas pudessem manter patentes (e aumentar muito o custo das mesmas) sobre remédios salvadores de vidas.
Com a ajuda de ativistas progressistas de Seattle a Hong Kong, e devido à enorme revolta de países em desenvolvimento na conferência ministerial de Cancun da OMC, Doha está mais ou menos morta e a OMC está num impasse. Isso é uma grande notícia para aqueles que querem ver o “comércio justo” como oposto ao "livre comércio" e pretendem acordos comerciais que colocam o desenvolvimento e os direitos humanos em primeiro lugar. O desafio agora é propor uma estrutura (e talvez mesmo um mecanismo) para a regulação multilateral do comércio global que dê mais prioridade a direitos humanos do que a lucros corporativos.
3) PAÍSES ESTÃO CADA VEZ MAIS COMERCIANDO EM DIVISAS LOCAIS
Além do FMI, um meio de os EUA manterem seu controle sobre o sistema econômico global é a supremacia do US dólar. Certas transações devem ser feitas em US dólares – comprar petróleo por exemplo – e o US dólar ainda é visto como a divisa global mais segura. O resultado é que o valor do dólar permanece artificialmente alto, aumentando o poder de compra dos consumidores estadunidenses e o desejo de toda a gente em vender aos EUA.
Essa situação não beneficia quase ninguém (nem mesmo os consumidores dos EUA) e alguns governos começaram a procurar alternativas. Acordos para começar a comerciar em divisas locais foram negociados entre o Brasil e a China, a Turquia e o Irão, a China e o Japão, e os países BRICS. Embora alguns desses acordos estejam apenas a iniciar, se implementados eles representam desafio significativo ao status quo.
4) A CRISE DE 2007-2008 DEMONSTROU, SEM QUALQUER DÚVIDA, QUE MERCADOS NÃO SE REGULAM A SI PRÓPRIOS. E A ISLÂNDIA PROVOU QUE HÁ OUTRO CAMINHO.
A crise financeira de 2007-08 está longe de ser a primeira crise financeira da era neoliberal. De fato, seria rigoroso chamar a era neoliberal de "era das crises financeiras". Desde o México em 1982, a outros países latino-americanos logo após, ao colapso das bolsas de valores dos EUA em 1987, ao Japão em 1990, à crise financeira asiática de 1997, à da Rússia e do Brasil em 1998-99, à Turquia e Argentina em 2000-2002, ao colapso da bolha da “dot.com”, dificilmente houve algum momento desde 1980 em que não houvesse uma crise financeira a acontecer em algum lugar. O que habitualmente acontece em tais tempos é que governos adotam medidas para proteger as elites (habitualmente, os banqueiros que realmente provocaram as crises) e comutam o fardo do pagamento dos seus custos para o público em geral. A crise atual é um bom exemplo.
A premissa básica do neoliberalismo – que "mercados livres" conduzem a melhor crescimento, mais prosperidade e mesmo mais igualdade – sempre foi ficção. Como Ha-Joon Chang, economista de Cambridge, reiteradamente apontou, não há tal coisa como um mercado livre. Nem há qualquer exemplo de um país que se tenha desenvolvido seguindo os dogmas neoliberais da privatização, liberalização e cortes orçamentais. Ao invés disso os países tradicionalmente têm utilizado uma combinação de subsídios, tarifas e investimento financiado por dívida para impulsionar indústrias e aproveitar sua vantagem comparativa para a produção de mercadorias mais avançadas.
Apesar da história, neoliberais argumentam que só os mercados deveriam determinar coisas como salários e que as corporações e seus proprietários deveriam poder operar como quisessem. Países desenvolvidos que adotaram dogmas neoliberais depois de 1980 viram os salários estagnarem quase tão rapidamente quanto os lucros das corporações disparavam.
No mundo em desenvolvimento, era muito pior. A África sofreu duas décadas de estagnação econômica como resultado direto de ser forçada a seguir essas políticas, com os latino-americanos e asiáticos a fazerem não muito melhor. A década passada viu alguma melhoria, mas a comunidade global ainda está bem atrás de onde deveria estar em termos de erradicar a fome e doenças evitáveis.
Mas a era neoliberal pode, finalmente, estar a aproximar-se do seu fim há muito esperado. Eis porque:
1) O FMI ADMITIU QUE CORTES ORÇAMENTAIS NEM SEMPRE SÃO A RESPOSTA.
O FMI, durante mais de três décadas, forçou países a reestruturarem suas economias a fim de se alinharem aos dogmas neoliberais. Eles, em particular, obrigaram países endividados a cortarem orçamentos antes de poderem tomar emprestado junto a mercados de capitais para reembolsar credores. As frases que burocratas e políticos inventaram para vender essa ideologia são agora clichês: "Governos não podem gastar mais do que ganham", "Todos nós precisamos apertar os cintos" etc, etc. “Com o corte da despesa do governo”, continua a estória, “os países abrem espaço para aumento dos gastos do setor privado e a economia cresce”.
Embora estudos anteriores do FMI tenham chegado a conclusões semelhantes, só em Janeiro de 2013 o economista chefe do FMI publicou o que equivale a um "mea culpa". Descobriu que diminuição do investimento público é realmente um caminho muito bom para prejudicar perspectivas de desenvolvimento econômico, ao invés de aumentá-las. Uau!
E há outra faceta na estória. Durante os últimos anos, decisores têm citado um documento de economistas de Harvard que sublinham ostensivamente os perigos de países tomarem demasiado emprestado a fim de financiar despesas públicas. O documento sugere, especificamente, um ponto de ruptura – quando a dívida atinge os 90% do PIB – para além da qual as economias sofreriam devido às suas despesas excessivas. O documento tem sido citado por autoridades públicas de todo o globo a fim de justificar cortes orçamentais. Mas verificou-se que as conclusões do documento resultavam de uma série de erros, um dos quais foi esquecerem-se de atualizar um cálculo numa folha de Excel. Quando os dados corretos são colocados no lugar, as conclusões mais ou menos desaparecem. Duplo uau!
2) A CONFERÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DE DOHA ESTÁ MORTA
Em Novembro de 2001, a “Organização Mundial do Comércio” lançou a sua "Conferência do desenvolvimento de Doha" ("Doha development round"). Apesar do seu nome, a conferência de Doha acerca de tudo menos desenvolvimento. Em lugar alto na agenda, havia coisas como remover proteções sociais e ambientais, eliminar subsídios para agricultores pobres e assegurar que grandes companhias farmacêuticas pudessem manter patentes (e aumentar muito o custo das mesmas) sobre remédios salvadores de vidas.
Com a ajuda de ativistas progressistas de Seattle a Hong Kong, e devido à enorme revolta de países em desenvolvimento na conferência ministerial de Cancun da OMC, Doha está mais ou menos morta e a OMC está num impasse. Isso é uma grande notícia para aqueles que querem ver o “comércio justo” como oposto ao "livre comércio" e pretendem acordos comerciais que colocam o desenvolvimento e os direitos humanos em primeiro lugar. O desafio agora é propor uma estrutura (e talvez mesmo um mecanismo) para a regulação multilateral do comércio global que dê mais prioridade a direitos humanos do que a lucros corporativos.
3) PAÍSES ESTÃO CADA VEZ MAIS COMERCIANDO EM DIVISAS LOCAIS
Além do FMI, um meio de os EUA manterem seu controle sobre o sistema econômico global é a supremacia do US dólar. Certas transações devem ser feitas em US dólares – comprar petróleo por exemplo – e o US dólar ainda é visto como a divisa global mais segura. O resultado é que o valor do dólar permanece artificialmente alto, aumentando o poder de compra dos consumidores estadunidenses e o desejo de toda a gente em vender aos EUA.
Essa situação não beneficia quase ninguém (nem mesmo os consumidores dos EUA) e alguns governos começaram a procurar alternativas. Acordos para começar a comerciar em divisas locais foram negociados entre o Brasil e a China, a Turquia e o Irão, a China e o Japão, e os países BRICS. Embora alguns desses acordos estejam apenas a iniciar, se implementados eles representam desafio significativo ao status quo.
4) A CRISE DE 2007-2008 DEMONSTROU, SEM QUALQUER DÚVIDA, QUE MERCADOS NÃO SE REGULAM A SI PRÓPRIOS. E A ISLÂNDIA PROVOU QUE HÁ OUTRO CAMINHO.
A crise financeira de 2007-08 está longe de ser a primeira crise financeira da era neoliberal. De fato, seria rigoroso chamar a era neoliberal de "era das crises financeiras". Desde o México em 1982, a outros países latino-americanos logo após, ao colapso das bolsas de valores dos EUA em 1987, ao Japão em 1990, à crise financeira asiática de 1997, à da Rússia e do Brasil em 1998-99, à Turquia e Argentina em 2000-2002, ao colapso da bolha da “dot.com”, dificilmente houve algum momento desde 1980 em que não houvesse uma crise financeira a acontecer em algum lugar. O que habitualmente acontece em tais tempos é que governos adotam medidas para proteger as elites (habitualmente, os banqueiros que realmente provocaram as crises) e comutam o fardo do pagamento dos seus custos para o público em geral. A crise atual é um bom exemplo.
Mas, ao contrário das crises anteriores, há indicações de que, desta vez, podemos ver uma mudança de sistema. A primeira delas é simplesmente a escala da crise. A bolha habitacional dos EUA que entrou em colapso representou cerca de US$8 trilhões (milhões de milhões) em riqueza artificial. Isso é mais de 11% do PIB global e sem contar com as bolhas habitacionais que entraram em colapso na Europa e alhures. Isso é um fracasso do mercado numa escala maciça.
Desta vez, há também um exemplo de um país que protegeu os seus cidadãos, prendeu os seus banqueiros e está obtendo resultados muito melhores. O país, a Islândia, junta-se à Argentina como um dos únicos países a não cumprir dívidas resultantes de crise financeira. Os desastres que "toda a gente" estava à espera (não acesso a mercados de divisas, investidores pondo a Islândia na lista negra etc) nunca se materializaram, mostrando que mesmo pequenos países podem enfrentar o cartel internacional de credores e viver para contar a história.
A Islândia demonstra que não há nada de natural acerca do neoliberalismo. A decisão de proteger elites dos efeitos dos mercados enquanto utiliza-se aqueles mesmos mercados para punir todas as outras pessoas é uma injustiça política, não uma lei natural.
E é essa injustiça que assegura que o neoliberalismo seguirá o mesmo caminho do pássaro Dodô (extinto). Em última análise, mercados são apenas um contrato social, como o casamento. E assim como o movimento rumo à igualdade no casamento agora parece inevitável, a reforma drástica do modo como nos relacionamos com mercados está a caminho.”
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